Política
Obra do diabo
A família do jovem violentado e queimado vivo em um templo da Igreja Universal ainda espera por justiça
Na manhã seguinte ao desaparecimento do filho, o pai de Lucas Terra caminhava pelas ruas de Salvador com um punhado de cartazes nas mãos. Percorreu pontos de ônibus, hospitais, igrejas. Colou folhas em postes, abordou desconhecidos. Voltou ao templo da Igreja Universal do Reino de Deus no Rio Vermelho, um dos bairros mais tradicionais da capital baiana, onde o menino de 14 anos foi visto pela última vez ao lado do pastor assistente Silvio Galiza. Saiu de lá sob olhares frios e sem respostas.
O ritmo das investigações não acompanhava a corrida desesperada da família. O corpo carbonizado encontrado dois dias depois seguiria 42 dias sem identificação formal, prestes a ser enterrado como indigente, o que poderia ter inviabilizado o processo. O exame de DNA, que deveria ter sido providenciado pelo Estado, foi custeado pelos próprios familiares. Para eles, foi o primeiro sinal de que o caso não seria tratado com a gravidade exigida. A longa e tortuosa busca por justiça levou a mãe de Lucas, Marion Terra, a protocolar, no fim do mês passado, uma ação de responsabilidade civil contra o Estado da Bahia. Ela sustenta que falhas e omissões desde as primeiras horas, e ao longo de quase 25 anos, contribuíram para transformar o crime, ocorrido em março de 2001, em um dos processos de homicídio mais arrastados do sistema de Justiça. “Meu pai morreu sem respostas. O Estado falhou conosco desde o primeiro dia”, diz Carlos Terra, irmão de Lucas e advogado da mãe na ação.
Condenados por um júri popular, dois pastores envolvidos no crime continuam em liberdade
Lucas tinha 14 anos quando desapareceu após sair de um culto da Universal. Enquanto a mãe começava a trabalhar na Itália, ele permanecia na capital soteropolitana com o pai. Desde pequeno, circulava no grupo religioso, onde era visto como um adolescente dedicado e promissor, próximo de se tornar obreiro. Na noite de 20 de março de 2001, deixou o templo acompanhado do pastor auxiliar Silvio Roberto dos Santos Galiza, figura frequente em sua rotina na igreja. De um orelhão próximo ao templo do Rio Vermelho, avisou ao pai que participaria de uma atividade ali. Foi o último contato.
Dois dias depois, um corpo carbonizado foi encontrado em uma caixa de madeira na região central de Salvador. A confirmação de que se tratava de Lucas só veio após semanas, quando o DNA finalmente foi realizado. Para a família, a demora foi o primeiro elo de uma cadeia de negligências que marcaria todo o percurso judicial. O inquérito apontou que Galiza havia atraído Lucas e participado diretamente do crime. Ele foi denunciado ainda em 2001 e condenado em 2004 a 23 anos e cinco meses de prisão por homicídio qualificado. A pena foi posteriormente reduzida para 15 anos. Galiza hoje vive em liberdade. O laudo registrou agressões e imobilização física e constatou que o corpo foi queimado enquanto a vítima ainda respirava.
A investigação sobre a participação de cúmplices se arrastaria por mais de uma década. Em 2011, uma juíza substituta decidiu não enviar a júri os pastores Fernando Aparecido da Silva e Joel Miranda. A decisão só seria revertida muito tempo depois. “Nos custou dez anos”, afirma o irmão de Lucas. O caso mudou de rumo quando, já condenado, Galiza afirmou que Silva e Miranda teriam participado das agressões e da queima do corpo no templo. Ambos negam. Para o Ministério Público, havia, no entanto, elementos suficientes para levá-los a júri. Em abril de 2023, mais de duas décadas após o crime, eles foram julgados e condenados a 21 anos cada um. Os jurados concluíram que a dupla agiu em parceria com Galiza. Embora a sentença determinasse o regime fechado, os dois recorreram em liberdade, amparados pelo entendimento do STF que exige trânsito em julgado para execução da pena. O alívio pela condenação, diz a família, logo deu lugar à frustração. “Eles saíram do fórum pela porta dos fundos, cercados por seus advogados, como se nada tivesse acontecido”, afirma Carlos Terra.
Via-crúcis. Marion Terra decidiu processar o Estado da Bahia por negligência – Imagem: Acervo Pessoal Família Terra
A ação contra o Estado da Bahia recém-protocolada descreve falhas como demora para ouvir testemunhas, ausência de diligências básicas e falta de informação às vítimas. Outro ponto é a repetida substituição de delegados, promotores e juízes, o que provocava uma regressão no processo. Para a família, essa sucessão de trocas fragmentou a memória do crime e contribuiu para decisões conflitantes ao longo do tempo. A petição também critica a falta de apoio às chamadas “vítimas secundárias”. Marion relata ter sido tratada com frieza. “Ninguém nunca perguntou do que eu precisava.” Segundo ela, o Estado não cumpriu os protocolos de proteção previstos para crimes envolvendo crianças e adolescentes. A ação exige a responsabilização por omissão e negligência, e, mais que indenização, o reconhecimento formal de um erro.
A Procuradoria-Geral da Bahia informou que ainda não foi citada oficialmente na ação movida pela família. Enquanto não houver notificação judicial e acesso aos autos, o órgão diz não ter condições de se manifestar sobre o conteúdo. A defesa de Silva e Miranda contesta integralmente a condenação. O advogado Nestor Távora afirma que o júri se apoiou apenas no “depoimento tardio e nebuloso” de Galiza e que não há provas materiais contra seus clientes. No recurso apresentado ao Tribunal de Justiça, sustenta que o julgamento violou regras do procedimento do júri, citando a substituição de uma testemunha sem aviso prévio e dificuldade de acesso à íntegra dos autos. Por isso, pede a anulação da sessão ou a realização de novo julgamento. A defesa nega qualquer vínculo institucional com a Igreja Universal do Reino de Deus e garante representar exclusivamente os dois pastores. Sobre o financiamento da defesa, Távora informa apenas que os pagamentos ocorreram “de forma regular e com tributos recolhidos”.
Luta. Carlos, irmão de Lucas, se formou em Direito e assumiu o processo. “Meu pai morreu sem respostas”, lamenta. A Igreja Universal protege os pastores – Imagem: Acervo Pessoal Família Terra e Redes Sociais
Entretanto, a sentença à qual a reportagem teve acesso indica que os jurados se basearam em um conjunto mais amplo de elementos, incluindo depoimentos colhidos em plenário, contradições nas versões dos réus e achados do laudo cadavérico que detalham a violência sofrida por Lucas. Vale destacar ainda que o processo percorreu um longo trajeto institucional e envolveu investigações da Polícia Civil e do Ministério Público da Bahia, instrução na 1ª Vara do Júri, recursos no Tribunal de Justiça baiano, no STJ e no STF, até a condenação pelo júri em 2023.
Quase um quarto de século depois, a dor ainda ronda a casa da família Terra. A mãe, Marion, segue em um luto que nunca encontrou descanso. “Ela sofre diariamente. A fé é o que sustenta minha mãe, mas qualquer decisão que favoreça os réus destrói um pouco mais da esperança”, diz Carlos. O pai morreu acreditando na justiça. “Isso me marcou profundamente”, afirma. “Foi uma das razões pelas quais entrei na faculdade de Direito, para defender minha mãe e a memória do meu irmão.”
A ação movida contra o Estado nasce dessa busca, não de revanche, mas de responsabilidade. “O que esperamos é o reconhecimento de que houve negligência”, resume. O aparato de Justiça falhou, diz ele, na identificação do corpo, na investigação, no acompanhamento processual e no apoio à família. “Não é sobre dinheiro. É sobre dignidade, reconhecimento e memória. Sobre garantir que outras famílias não passem pelo que nós passamos.”
Depois de duas décadas e meia, a família decidiu processar o Estado por negligência
Ao longo dos anos, denúncias de abusos cometidos por integrantes da Igreja Universal chegaram até eles, muitas vindas de outros estados e até de outros países. A família sempre preferiu, no entanto, orientar os denunciantes a procurar o Ministério Público. “Não podemos assumir outra luta enquanto a do meu irmão não estiver encerrada”, afirma. A intenção, no futuro, é criar a Fundação Lucas Terra, para oferecer apoio jurídico e psicológico a vítimas e familiares, algo que, segundo ele, o Estado jamais ofereceu à sua família.
Em 2026, quando o crime completará 25 anos, a família planeja inaugurar, em Salvador, um memorial com documentos, reportagens, gravações, peças processuais e materiais inéditos. Não será apenas uma homenagem, mas um espaço de denúncia e educação sobre violência institucional. “O Lucas merece ser lembrado pelo que era, um menino de 14 anos que nunca deveria ter sido silenciado. Nossa luta agora é para que isso nunca mais aconteça.”
A Igreja Universal do Reino de Deus e o Ministério Público da Bahia não responderam aos pedidos de esclarecimento até o fechamento desta edição. •
Publicado na edição n° 1392 de CartaCapital, em 17 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Obra do diabo’
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