Política
Cavalo de Troia
FNDE contrata empresa de espionagem para gerenciar dados de programa nacional de transporte escolar
O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia federal subordinada ao Ministério da Educação, mantém desde o ano passado um contrato com uma empresa de “mineração de dados” que é alvo de diversas ações judiciais nos Estados Unidos por seus serviços de espionagem e contrabando de informações prestados a clientes como o Pentágono, a CIA e os serviços secretos MI6 (Reino Unido) e Mossad (Israel). Fundada em 2003 por Peter Thiel, cofundador do PayPal, e pelo bilionário Alex Karp, a Palantir é apontada por entidades de defesa dos direitos civis como aliada da extrema-direita internacional, posição reforçada recentemente pelo apoio tecnológico do grupo às operações do Exército israelense na Faixa de Gaza e ao rastreamento de imigrantes para deportação pela Agência de Imigração e Alfândega dos EUA (ICE).
O currículo da empresa não parece o mais adequado para cuidar de transporte escolar infantil, mas é isso que acontece desde março do ano passado, quando a Palantir passou a fazer a gestão e análise de dados do Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar (Pnate), que tem por objetivo possibilitar o acesso às escolas da rede pública por estudantes que moram em áreas rurais ou isoladas. O Relatório de Gestão do FNDE para 2025 afirma que, ao longo do ano, o fundo “ampliou significativamente seus investimentos em inovação tecnológica” e, entre outras aquisições, cita o software Palantir Foundry and Artificial Intelligence Platform (AIP), plataforma utilizada, segundo a própria empresa, para “integração, análise e modelagem de dados e desenvolvimento de baixo código”. A AIP é operada em parceria com o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro).
Feita sem alarde, a contratação da Palantir foi identificada pelo professor e sociólogo Sérgio Amadeu, que denunciou o caso em um vídeo publicado nas redes sociais. À CartaCapital, Amadeu afirma que o episódio ilustra um dos principais caminhos de penetração das big techs na administração pública brasileira: “A nuvem do Serpro está sendo usada como barriga de aluguel. O Serpro mantém parceria com a Amazon Web Services (AWS), que, por sua vez, tem um contrato sigiloso com a Palantir. Esse arranjo torna invisível uma série de operações. Uma big tech foi colocada para integrar a nuvem tanto do Serpro quanto da Dataprev”.
Amadeu questiona a contratação da Palantir sem licitação. “Não haveria outros sistemas similares para a gestão de dados do FNDE? Somente o Palantir Foundry poderia ser utilizado? Por que contratar essa solução?”, indaga. Procurada pela reportagem para esclarecer esse e outros pontos, a presidência do FNDE respondeu, por meio de nota, que a entidade “utiliza a Plataforma Foundry, licenciada via contrato com o Serpro, para integrar dados públicos sob domínio da autarquia e aprimorar o acompanhamento de repasses operados pelo FNDE”.
A direção do fundo minimiza os riscos à soberania nacional de dados: “Os programas operacionalizados pela plataforma são públicos ou passíveis de publicização. A operação é inteiramente conduzida por colaboradores do próprio FNDE e não envolve tratamento, transferência ou compartilhamento de dados sensíveis. A solução é hospedada no Brasil, em conformidade com a legislação nacional e com as normas de segurança da informação”.
Com longa lista de serviços prestados à CIA, ao MI6 e ao Massad, a Palantir criou sistema para rastrear imigrantes ilegais nos EUA
Já a diretoria do Serpro afirma que não há parceria entre o órgão e a Palantir: “A solução mencionada, Palantir Foundry, é um produto comercial disponibilizado pela própria empresa no marketplace da AWS. O contrato de Multicloud do Serpro prevê o uso de marketplace e o órgão tem autonomia para decidir a solução, cabendo ao Serpro realizar o processo de faturamento”. Nesse modelo, o Serpro “não contrata, integra, opera ou acessa” a solução da Palantir: “A relação comercial ocorre diretamente entre o FNDE e o fornecedor, utilizando apenas a infraestrutura contratual do marketplace para fins de faturamento. O ambiente tecnológico e sua operação são totalmente geridos pelo órgão contratante e pelo provedor da solução”.
Indagada sobre onde ficariam armazenados os dados tratados pela Palantir, a diretoria afirma não saber: “O Serpro não tem gestão nem acesso aos dados utilizados nas soluções contratadas diretamente pelo FNDE no marketplace. Portanto, não é possível avaliar arquitetura, criticidade ou localização desses dados. Essa informação deve ser obtida diretamente com o FNDE, órgão responsável pela contratação, implementação, operação e governança da solução da Palantir no contexto de seus programas”.
Criada na esteira dos atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA, com investimentos iniciais estimados em 9 bilhões de dólares, a Palantir foi concebida para trabalhar com a CIA na “guerra ao terror” promovida pelo governo do então presidente George W. Bush. O CEO Alex Karp, outrora militante do Partido Democrata, desde então vem se aproximando progressivamente dos setores mais à direita da política norte-americana. Focada no desenvolvimento de ferramentas de Inteligência Artificial, a Palantir atualmente tem uma dezena de contratos com o governo de Donald Trump, o último deles firmado em setembro pelo valor de 128 milhões de dólares. A receita total da Palantir em 2024 foi de 2,87 bilhões de dólares.
O produto da Palantir em voga no momento é o Sistema Operacional do Ciclo de Vida da Imigração (Immigration OS), contratado sem licitação em abril pela ICE por 60 milhões de dólares, com o objetivo de “facilitar operações de seleção e detenção de estrangeiros ilegais”. Segundo a agência de imigração, a falta de concorrência pública se justificou pela “necessidade urgente e imperiosa” de levar a cabo o plano trumpista de expulsar 3 mil imigrantes ilegais por dia dos EUA. “A Palantir é a única fonte capaz de fornecer os recursos necessários sem causar atrasos inaceitáveis”, diz o governo norte-americano.
Sérgio Amadeu ressalta que a Palantir está submetida ao Cloud Act, ao FISA e à expansão jurisdicional do Estado norte-americano: “Mais do que isso, é uma empresa comprometida com o sistema de vigilância, espionagem e controle do Pentágono e de agências como a CIA e a NSA. Um dos seus fundadores, Peter Thiel, é um dos maiores financiadores da extrema-direita norte-americana e um dos entusiastas da atuação genocida de Israel na Faixa de Gaza”. •
Publicado na edição n° 1392 de CartaCapital, em 17 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cavalo de Troia’
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