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Jogos vorazes

Ao adquirir a Warner Bros., a Netflix se fortalece ante o YouTube e, ao mesmo tempo, atinge em cheio o cinema

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Um século. O Cantor de Jazz de 1927, foi o primeiro filme falado feito pela companhia criada pelos irmão Warner.A série House of Cards, lançada em 2013, foi o primeiro original da Netflix – Imagem: Acervo Warner Bros. e Netflix
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Na terça-feira 8, em um encontro que reuniu profissionais do setor audio­visual em um espaço de eventos na região da Avenida Faria Lima, em São Paulo, Elisabetta Zenatti, VP de Conteúdo da Netflix no Brasil, abriu sua fala com uma linha adicionada de última hora ao roteiro: “Dá para sentir as perguntas no ar: as de vocês, e as nossas também”.

O anúncio da compra dos estúdios da Warner Bros. pela Netflix, na sexta-feira 5, deixou os organizadores do encontro num impasse. Ignorar o fato soaria ridículo. Ao mesmo tempo, não havia muito o que dizer.

A bem-humorada referência ao que pode vir a ser o maior negócio da indústria audiovisual no século XXI foi seguida da apresentação das produções da empresa no Brasil em 2026, agora embaladas sob o slogan Feito Aqui – Nasce no Brasil. Viaja pelo Mundo.

No curtíssimo prazo, a fusão não deve alterar nem o dia a dia nem os planos locais, inclusive porque se estima que o processo se estenda por até um ano e meio. E mais: o negócio ainda será analisado pela Federal Trade Commission e pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que têm nas mãos o martelo antitruste.

O impacto da notícia foi, porém, gigantesco. Além de ter um valor espantoso – 83 bilhões de dólares –, a negociação carrega um forte simbolismo: uma empresa do Vale do Silício compra um estúdio que remonta à origem do poder ­hollywoodiano. É um pouco como se a Apple comprasse a Disney – algo também aventado.

Nascida como uma locadora que enviava filmes pelos correios, a Netflix entrou no streaming em 2007 – dois anos após o lançamento do YouTube. Quando inaugurou seu serviço de vídeo sob demanda ligado a uma assinatura mensal, a empresa transmitia o conteúdo feito pelos outros.

Em 2013, veio a primeira produção original, a série House of Cards; em 2018, as primeiras indicações ao Oscar com Roma, longa-metragem de perfil autoral. Acontece que, enquanto a Netflix começava a produzir, os estúdios começavam a lançar suas plataformas – assumindo, para isso, dívidas enormes.

O momento mais intenso desse processo se deu entre 2020 e 2022, quando a pandemia fechou sets de filmagem e salas de cinema e o streaming viveu um boom. Conforme o mercado foi se estabilizando, duas coisas ficaram claras.

A primeira é que a Netflix não só não possui o know how dos estúdios como, por não ter propriedades intelectuais consagradas, gasta muito em desenvolvimento de ideias. A segunda é que as ­majors não têm a sua capacidade para conquistar e manter assinantes.

São, hoje, cerca de 300 milhões de assinantes da Netflix no mundo. A plataforma número dois é a Prime, cujo principal atrativo é, na prática, o frete grátis. A número três é a HBO, padrão ouro de televisão, pertencente à Warner. A estimativa é que com a fusão se chegue a 430 milhões de assinantes.

David Ellison, CEO da Paramount, declarou, após o anúncio, que o negócio seria um “desastre monopolista”. A ­Paramount, no entanto, também havia tentado comprar a Netflix.

Embora seja um estúdio centenário como a Warner, a Paramount pertence, desde agosto, à Skydance, administrada por ­Ellison, filho do fundador da Oracle. O serviço de vídeo sob demanda do grupo, o ­Paramount Plus, tem 80 milhões de assinantes.

De acordo com o Financial Times, o processo de venda foi aberto pela própria Warner, em outubro. Internamente, cada concorrente tinha um codinome: a ­Warner era Wonder; a Netflix, Noble; e a ­Paramount, Prince. A oferta da ­Paramount foi de 108 bilhões de dólares e incluía os canais de TV a cabo, como CNN e a TNT, que estão fora da proposta da Netflix.

A empresa estreou na produção com House of Cards, mas ainda carece de marcas fortes

Por que a oferta da Netflix foi mais bem aceita que a da Paramount é algo que o mercado tem debatido. Uma possibilidade é que como a Netflix não tem um estúdio, aumentam as possibilidades de a Warner ser mantida praticamente intacta. Há ainda os bastidores políticos.

A Skydance estaria indicando, desde o processo de fusão com a Paramount, ­ter certa disposição para agradar o governo Trump. No domingo 7, o presidente norte-americano disse que, juntas, Warner Bros. e Netflix têm um “enorme market share” e que isso “pode ser um problema”.

No dia seguinte, Greg Peters, co-CEO da Netflix, afirmou: “Passamos de 8% das horas de visualização hoje nos Estados Unidos para 9%. Então, ainda estamos atrás do YouTube, que tem 13%”. O cerne do argumento da Netflix é que a fusão deve ser analisada dentro de um mercado que inclui TV a cabo, TikTok, YouTube e Reels.

Ou seja, a nova empresa seria um gigante do mercado de vídeo sob demanda por assinatura, mas apenas grande no vasto mundo do consumo audiovisual. Nessa disputa, o catálogo da ­Warner, que vai de clássicos do cinema século XX a sucessos do século XXI, como Harry Potter e Batman – sem falar nas séries da HBO, como Game of ­Thrones, e The White Lotus –, é um tesouro.

Enquanto busca se defender do ­YouTube, a Netflix, ao mesmo tempo, atinge em cheio o já enfraquecido mercado de salas de cinema. Com a fusão, não só se amplia a oferta no catálogo da plataforma como se reduz a oferta de títulos para o circuito exibidor. Dentre os ­blockbusters de 2025, três vieram da Warner: Um Filme Minecraft, Inovação do Mal 4: O Último Ritual e Superman.

Após o anúncio da fusão, realizadores de longas-metragens e sindicatos ligados à exibição cinematográfica vieram a público, mundo afora, para deixar notas de lamento e preocupação. •

Publicado na edição n° 1392 de CartaCapital, em 17 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Jogos vorazes’

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