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O marketing da justiça social

Para Jennifer C. Pan, a elite econômica norte-americana abraça o antirracismo para reforçar seu poder

O marketing da justiça social
O marketing da justiça social
Passo atrás. Para a autora, o movimento woke teve seu auge após o assassinato de George Floyd, em 2020 – Imagem: Redes Sociais e Bryan R. Smith/AFP
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Jennifer C. Pan é uma escritora que vive em Los Angeles e tem textos publicados em veí­culos como The Nation, The Atlantic, Dissent e ­Damage. Ela foi também apresentadora do ­Jacobin Show – vídeos e Podcasts produzidos pela tradicional revista Jacobin – e redatora da The New Republic. Este ano, ela lançou, pela Verso, Selling Social Justice: Why the Ruling Class Loves Antirracism – Justiça Social à Venda: Por que a Classe Dominante Ama o Antirracismo.

No trabalho, Jennifer investiga como a elite econômica dos Estados Unidos abraçou certo tipo de antirracismo, especialmente a partir de 2020, para reforçar seu poder corporativo, evitar a regulação estatal e substituir reformas materiais por políticas de “diversidade, equidade e inclusão” com resultados limitados.

Com um texto direto, baseado em pesquisa rigorosa, o livro constrói um argumento potente: num cenário de estagnação de renda e escassez de oportunidades, essa nova gramática moral tende a desviar o debate sobre desigualdade para um lugar que limita seu potencial de transformação.

A justiça social embalada para venda oferece às empresas uma narrativa virtuosa, mas, na prática, preserva a ordem econômica tal e qual ela é. Embora o foco da análise de Jennifer seja a realidade norte-americana, o que ela vê lá aplica-se também ao Brasil.

CartaCapital: O título do seu livro, ao ser traduzido, soaria forte no Brasil, país no qual metade da população é negra e historicamente excluída de empresas, da política e da mídia. As políticas de inclusão e a expansão do ensino superior nos últimos 15 anos aumentaram a consciência de direitos e a pressão por representação. Como a senhora compara a situação brasileira com a norte-americana?
Jennifer Pan: Cada país tem história própria de direitos civis e até mesmo de como a “raça” é constituída, mas sempre paralelos. Nos Estados Unidos, pessoas brancas seguem super-representadas em setores como o mercado editorial e nos conselhos de administração. Faltam pessoas negras, mulheres e outros grupos nesses espaços. As disparidades são reais e a representação tem ressonância. Mas, se você perguntar a um trabalhador não branco de classe trabalhadora se ele prefere ver “alguém como ele” no conselho da empresa ou ter aumento de salário, a maioria escolherá o salário.

“É mais fácil assinar embaixo de uma solução pontual do que se comprometer com direitos universais duradouros”

CC: Muitos comentaristas liberais defendem tributar os super-ricos, mas não intervir nos salários de executivos. O que funciona melhor para reduzir a disparidade?
JP: Nos EUA, faltam duas coisas: pré-distribuição, que significa corrigir políticas públicas e de mercado antes do pagamento de salários, e redistribuição, que significa tributar depois. Precisamos de ambas. Pesquisas mostram, porém, que trabalhadores tendem a preferir pré-distribuição aos modelos de taxação sobre fortuna ou consumo. Há consenso de que o trickle down – a ideia de que quando os ricos ficam mais ricos, os pobres acabam se beneficiando – não funcionou.

CC: Do ponto de vista das empresas, minha impressão é que conselhos e diretores são pragmáticos. Eles, na prática, priorizam lucro e o valor da ação, ou seja, ser woke – termo que se refere à defesa de justiça social e racial – ou anti-woke é apenas a linguagem de ocasião.
JP: Não acho que quem está na cúpula seja “secretamente racista”. Há executivos que acreditam sinceramente no antirracismo e defendem metas de diversidade e inclusão. No entanto, mesmo quando há a convicção individual, a empresa continua subordinada ao lucro. É aí que o discurso encontra seu limite material.

CC: Entramos numa era pós-woke?
JP: É cedo para cravar. O movimento teve seu pico entre 2020 e 2021, especialmente após o assassinato de George Floyd pela polícia, e arrefeceu. Os ataques explícitos a programas de diversidade, equidade e inclusão e ESG (sigla derivada de environmental, social and governance, em inglês) pela direita têm efeito. Mas declarar a morte do DEI (sigla para diversity, equity, and ­Inclusion, em inglês) é exagerado. Muitas empresas trocaram o rótulo “DEI” pela palavra pertencimento, mantendo práticas semelhantes. Alguns casos de recuo viram manchete, mas há gigantes que dobram a aposta em DEI e ESG, muitas vezes com apoio de acionistas institucionais. Em resumo, temos um certo “reposicionamento de marca”.

CC: A senhora costuma apontar para os limites das políticas reparatórias por parte de empresas ou governos. Por que, na sua avaliação, as políticas de reparação são uma má resposta?
JP: Num cenário de estagnação para 99% dos trabalhadores, propor benefícios em dinheiro para uma fatia da população tende a dividir a sociedade. Penso, além disso, que, do ponto de vista moral, a esquerda deveria mirar de forma ampla quem é pobre hoje, independentemente de genealogia ou da identidade – seja a pobreza herança da escravidão ou da destruição sindical. Por fim, me parece que, economicamente, a política de reparação sai mais barata que um estado de bem-estar abrangente. Nesse sentido, ela é atraente para as elites. É mais fácil assinar embaixo de uma solução pontual­ do que se comprometer com direitos universais duradouros.

CC: No Brasil, as políticas identitárias catalisaram a guinada à direita de parte da classe média.
JP: É análogo ao que vemos em ciclos eleitorais recentes nos Estados Unidos. O Partido Democrata enfrenta um problema muito parecido aqui: parte do eleitorado passou a enxergar as políticas de justiça racial e diversidade como algo que divide a sociedade, especialmente em momentos de crise econômica. Isso tem alimentado reações conservadoras e dificultado a construção de uma base comum em torno de pautas materiais. •

Publicado na edição n° 1392 de CartaCapital, em 17 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O marketing da justiça social’

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