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Para além do dólar

Uma proposta para a criação de uma nova moeda internacional de reserva capaz de garantir liquidez e confiança

Para além do dólar
Para além do dólar
Alternativa. O dólar é usado como instrumento geopolítico contra outros países. Vamos conviver indefinidamente com o sistema financeiro do pós-Guerra? – Imagem: iStockphoto
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E possível e desejável criar uma nova moeda internacional como alternativa ao dólar dos Estados Unidos? O tema é controvertido. Já escrevi algumas vezes a esse respeito, inclusive aqui mesmo nesta coluna, há pouco mais de dois anos, sob o título “Uma moeda BRICS?” Desde então, desenvolvi a proposta de forma mais completa e abrangente, em trabalho que estou concluindo agora, com apoio do Ipea e da Cepal. O artigo de hoje é um resumo dos principais aspectos da ideia. O que pretendo com isso é colocar em discussão uma alternativa inovadora, que deve ser submetida a críticas, pois, certamente, precisa de aperfeiçoamentos e revisão.

Um caminho possível

Qual seria o melhor caminho para uma nova moeda? Apresento a seguir o que me parece mais factível. Um caminho alternativo ao que proponho seria ­lastrear a nova moeda em ouro, como tem sido cogitado por economistas russos. Contudo, esses economistas não explicaram, que eu saiba, como resolver os problemas que essa alternativa encerra, notadamente o seguinte: como dar estabilidade a uma nova moeda apoiando-a em um ativo eminentemente instável?

Melhor seria lastrear a nova moeda de outra maneira. Vejamos como.

Quem criaria a nova moeda? Só há uma possibilidade nas atuais circunstâncias, um grupo de países do Sul Global, algo como 15 a 20, que incluiria a maioria dos BRICS e outras nações emergentes de renda média. Esse grupo poderia delegar a emissão da nova moeda a uma das instituições existentes? Não, nenhuma delas tem condições de assumir essa missão com eficiência e confiabilidade.

Teria de ser criada, portanto, uma nova instituição financeira internacional, um banco emissor, cuja única e exclusiva função seria emitir e colocar em circulação a moeda. Esse novo banco não substituiria os Bancos Centrais nacionais e a sua moeda circularia em paralelo às moedas nacionais dos países do grupo patrocinador e em paralelo às demais moedas nacionais e regionais existentes no mundo. Ficaria restrita a transações internacionais, sem papel doméstico.

Como se garante o sucesso de uma moe­da? O que faria a nova moeda ser amplamente utilizada? O essencial é assegurar confiança, o que depende da maneira como o novo arranjo monetário for construído do ponto de vista institucional.

O caminho que me parece mais viável incluiria, entre outros elementos, as seguintes garantias legais: 1. Estabilidade da nova moeda em termos de valor. 2. A sua não utilização como instrumento de sanção ou pressão sobre países. 3. Autonomia operacional do banco emissor. 4. Lastreamento da moeda numa cesta de títulos públicos dos países patrocinadores.

Abordo os quatro pontos, em apertadíssima síntese, como dizem os advogados. Uma versão mais detalhada pode ser encontrada no site de CartaCapital.

Primeiro ponto: a moeda ficaria basea­da numa cesta ponderada das moedas dos países patrocinadores da iniciativa e flutuaria, portanto, com base nas variações dessas moedas. Os pesos na cesta seriam dados pelo tamanho das economias do grupo de países. A cesta teria certa estabilidade proporcionada endogenamente pela presença nela tanto de moedas de países exportadores quanto de moedas de importadores de ­commodities. Essa estabilidade poderia ser reforçada exogenamente, estabelecendo-se que a média seria geométrica e simetricamente aparada. As moedas com grande flutuação, para além de limites preestabelecidos, seriam temporariamente excluídas da cesta.

Segundo ponto: o compromisso explícito de não recorrer a sanções faria o contraste com a insegurança resultante do uso abusivo do dólar e do euro como base para punições e chantagem. Essa garantia legal seria reforçada pelo terceiro ponto: a autonomia operacional do banco.

O lastro seria uma cesta de títulos dos países participantes

A autonomia operacional dependeria de assegurar aos presidentes e vice-presidentes do banco mandatos relativamente longos (cinco anos, por exemplo). Isso passaria a mensagem de que o banco não estaria facilmente sujeito a interferências políticas e manobras diplomáticas dos seus fundadores. Esse tipo de autonomia é garantido juridicamente em todas ou quase todas as organizações financeiras internacionais. Não protege totalmente o banco contra interferências, mas tem o seu valor.

Quarto ponto: o lastro da nova moeda seria formado por uma cesta de títulos nacionais dos países participantes. O banco emissor emitiria não só a nova moeda reserva (NMR), como também novos títulos de reserva (NRB), cujas taxas de juro seriam atraentes, pois refletiriam os juros dos títulos das nações participantes, todos eles superiores às taxas dos títulos em dólares e euros. A NMR seria plenamente conversível em NRB e estes, por sua vez, na cesta de títulos dos países participantes. O elevado peso da moeda chinesa, emitida por um país de economia sólida, favoreceria a confiança no lastro e na NMR.

A reação do Ocidente

A proposta tem as suas vulnerabilidades, discutidas no trabalho em fase de finalização. Para não me alongar, destaco a que me parece mais grave, o risco de que a iniciativa suscite reações negativas do Ocidente, que poderia recorrer a ameaças e sanções contra os países envolvidos na criação de uma alternativa ao dólar e ao euro. Esse risco é real. O Ocidente, em franca decadência, mostra-se ainda mais arbitrário e violento do que em outras épocas.

O que temos de nos perguntar, entretanto, é o seguinte: vamos conviver indefinidamente com o sistema monetário e financeiro que o Ocidente criou após a Segunda Guerra Mundial, sistema usado coercitivamente como instrumento geopolítico? Ou vamos reunir esforços econômicos, políticos e intelectuais para sair desse lamaçal?

Os próximos anos dirão se os países emergentes estão à altura desse desafio. •

Publicado na edição n° 1392 de CartaCapital, em 17 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Para além do dólar’

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