Economia
Papai Estado
Nas crises bancárias, há quem sempre queira trocar a mão invisível do mercado pelo colo seguro do Leviatã
O desfecho do episódio iniciado pela identificação de fraudes e de prejuízos bilionários nas demonstrações contábeis do Banco Master (e fora delas) permanece um mistério para os interessados no espólio dos ativos da instituição. O que nos parece certeiro e registrado nas histórias do capitalismo é a inevitável intervenção do Estado, quando o mercado, livre, leve e solto, apronta suas trapalhadas. O noticiário e as análises midiáticas em torno do tema correm para particularizar as culpas, na tentativa de salvar a reputação da mão boba e invisível do mercado.
O recuo para o campo moral, anotamos em nosso Avenças e Desavenças da Economia, não corresponde à simples defesa dos pruridos éticos dos bons financistas em detrimento daqueles que, diriam os bolsonaristas, abandonaram as quatro linhas do celebrado compliance, regras de gestão e transparência encarregadas de defender a “racionalidade” capitalista das desastrosas relações humanas e políticas. O debate econômico coetâneo dedica-se à reiterada justificação moral do livre mercado, instância infalível que promove o bem-estar geral por meio dos processos do individualismo e do egoísmo esclarecido.
Em todos os tempos da assim chamada financeirização da riqueza, os defensores da racionalidade mercadista suprimem os poderes e deveres do Estado na gestão da economia, elegendo os momentos de crise como períodos de expurgo, nos quais o mercado empurra para fora os violadores da concorrência. Quando abalroado por terremotos financeiros, o discurso moralista convoca os préstimos do Papai Estado, bondoso e leniente.
Leniente, Papai Estado usa seu poder de polícia e de Política (com P maiúsculo) para reprimir os atos imorais de fraudadores e irresponsáveis, deixando intactos os mecanismos que permitem a tomada e o compartilhamento de riscos, incluindo as magias da contabilidade bancária e empresarial. A bondade do Papai Estado está sempre presente ao emitir dívida pública para prevenir a deterioração da riqueza privada, submetida inexoravelmente às incertezas que assombram o valor presente dos ativos financeiros. Assim, quando os fluxos monetários entram em colapso, a avaliação dos mercados ameaça a rentabilidade e, sobretudo, a liquidez dos ativos.
Na presença e predominância de operações fora do balanço, shadow banks e instrumentos de compartilhamento de riscos (derivativos, swaps, securities etc.), as avaliações sobre a riqueza estão sujeitas aos descuidos nocionais e emocionais de investidores e analistas, aos cuidados venalmente flexíveis das agências de classificação de risco e à incúria das instâncias responsáveis pela regulação. Nos momentos em que os protagonistas do jogo financeiro se veem traídos por sua racionalidade, o capitalismo afirma seu poder diante dos possuidores ocasionais da riqueza, submetendo-os às suas realidades de carne, osso e nervos.
Acossados pelos deveres da carne, os suspeitos pela entrega de suas almas ao demônio da ganância suplicam pela clemência do Verbo. Chamam pela liquidez e não são atendidos. Os últimos a perceberem o perigo puxam a fila para o abismo, arrastando consigo os bons e os maus.
O Diabo, já na carcaça de Fausto, avisou o sábio de seu destino:
— Obrigo-me a servi-lo em tudo e à risca enquanto vivo for, e obedecer-lhe aos acenos até, sem cansar nunca.
Depois, quando lá embaixo nos toparmos, trocamos os papéis.
Pretendendo enganar o Diabo, Fausto devolve:
— Pouco me afreimo
Do teu depois, e mais do teu lá embaixo!
Quando o Diabo vem em busca de sua parte, os tomadores de riscos excessivos regateiam, pechincham e, no fim, aceitam o acordo mais digno: fundem e aglomeram suas riquezas para salvar seu orgulho. Ontem, o orgulho se refestelava na valorização dos títulos de propriedade privada. Hoje, o orgulho é convertido em títulos de dívida pública, a verdadeira religião do capital, diria outro alemão, fã de Goethe.
A ira moralista é o avesso do fervor no livre mercado
Os propósitos da encarnação do espírito dinheirista se cumprem. Na órbita financeira, o valor se valoriza, em seu estado etéreo e abstrato, à margem da valorização dita “riqueza real”, fruto agora apodrecido, do trabalho humano. A podridão desaparece nos balanços consolidados da finança, grandes demais para virar poeira, pequenos demais para conter seus tentáculos caçadores de rendimentos.
Um velho desconhecido dos economistas contemporâneos apelidou essa dinâmica de Regime do Capital, comprometido, em sua saga, pela acumulação de riqueza abstrata.
Na contramão da mão boba, mas nem tão invisível, caminham os que consideram a predominância das finanças e das crises financeiras como deformações do capitalismo. Esse é o credo das cátedras da Nova Economia, que, ao contrário dos trabalhadores e das gentes comuns, estão comprometidas com o pensamento servil aos interesses burgueses. São muitos os senhores e senhoras que cultivam pensamento progressista empenhados em apontar os culpados pelos malfeitos do capitalismo contemporâneo: a dama financeirização, o senhor neoliberalismo e a dona globalização.
Não é um mau negócio relembrar aos neurônios viciosos as lições de Fernand Braudel em seu clássico Civilização Material e Capitalismo ao comentar o papel desempenhado pelos “fornecedores de dinheiro”: “Acumulai! Acumulai! É o que manda a lei para uma economia capitalista. Também se poderia dizer: Emprestai! Emprestai! É o que manda a lei’ e todas as sociedades acumulam, dispõem de um capital que se divide entre uma poupança entesourada e então inútil, mantida à espera, e um capital cujas águas benéficas passam pelos canais da economia ativa, outrora sobretudo a economia mercantil. Se esta não for suficiente para abrir ao mesmo tempo todas as comportas possíveis, haverá quase forçosamente um capital imobilizado, desnaturado, poder-se-ia dizer. O capitalismo só estará plenamente instalado quando o capital acumulado for utilizado ao máximo, sem nunca se atingir, evidentemente, os 100%”.
A ira moralista é o avesso do fervor livre mercadista, assim como o moralismo midiático e internético de nosso tempo é a outra face da amoralidade das formas de dominação incrAustadas na sociedade de massa contemporânea. Nela, mostrou Hannah Arendt, o indivíduo desarraigado e sem rumo é manipulado e abusado por slogans simplistas.
Os dois estados de espírito, a ira e a crença cega, alternam-se na alma dos bons cidadãos. Um e outro impedem a compreensão da ruptura das formas econômicas e das relações sociais desvelada pelos momentos de crise, inerentes e constitutivos do capitalismo e de seu domínio. •
Publicado na edição n° 1392 de CartaCapital, em 17 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Papai Estado’
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