Cláudio Couto

Cientista Político na FGV-EAESP

Opinião

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Vacina contra o autoritarismo

Não é razoável imaginar que apenas 21 senadores possam afastar um ministro do STF. Gilmar Mendes tem boas razões para querer proteger a Corte do constante assédio da extrema-direita

Vacina contra o autoritarismo
Vacina contra o autoritarismo
A decisão do ministro Gilmar Mendes sobre a Lei do Impeachment será analisada pelo plenário do STF. Foto: Fellipe Sampaio/STF
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Uma nova crise na relação entre os poderes se abriu com a recente decisão, do ministro Gilmar Mendes, de declarar inconstitucionais trechos da Lei do Impeachment de 1950 referentes à cassação de ministros do Supremo Tribunal Federal. A decisão respondeu à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) proposta pelo partido Solidariedade e pela Associação dos Magistrados Brasileiros.

Os dispositivos legais impugnados tratam do número de votos exigido em duas votações preliminares à da cassação do ministro. A primeira é a de iniciar ou não a análise do impeachment; a segunda, a de aceitar ou não o pedido. Em ambos os casos, a aprovação ocorre por maioria simples – isto é, metade mais um dos senadores presentes à sessão. Uma terceira votação, cujo artigo não foi impugnado na ADPF, estabelece que a cassação do ministro só se concretiza com maioria qualificada de dois terços dos votos.

Contudo, a segunda dessas decisões por maioria simples já afasta liminarmente o juiz do exercício do cargo e reduz seus vencimentos em um terço – de forma semelhante ao impeachment de presidente da República, cujo afastamento se dá após aceitação do processo na Câmara dos Deputados, mas com exigência de dois terços dos votos. A mesma proporção é requerida no Senado, onde se realiza o julgamento definitivo da cassação.

Como se nota, há uma assimetria. Enquanto o afastamento (mesmo liminar) do chefe do Executivo exige uma “supermaioria”, no caso de juízes da Suprema Corte basta um punhado de senadores. Em números, o afastamento do presidente da República ocorre com o voto de 342 dos 513 deputados, e sua cassação requer 54 dos 81 senadores. Para um ministro do STF, entretanto, o afastamento pode dar-se com apenas 21 votos – desde que estejam presentes 41 senadores, quórum mínimo da sessão.

Logo se brandiu contra Mendes a acusação de que estaria blindando a si e a seus pares da responsabilização por malfeitos, da mesma forma como tentaram os deputados na infame PEC das Prerrogativas – mais propriamente denominada PEC da Blindagem ou da Bandidagem. Ainda mais porque, para além da questão das votações mínimas necessárias para processar e afastar liminarmente juízes, o decano do STF decidiu também restringir apenas ao procurador-geral da República a prerrogativa de iniciar o processo, enquanto a lei habilita qualquer cidadão a fazê-lo. Não bastasse, fez sua decisão valer cautelarmente até que o plenário analise o assunto. Como se trata de lei em vigor há mais de 75 anos, causa estranheza, portanto, uma decisão liminar que deveria ser proferida apenas em casos urgentes.

Há certa imprecisão nas acusações. Mais do que blindar juízes como indivíduos, tal qual pretendia a PEC da Bandidagem com parlamentares e presidentes de partidos, a decisão de Mendes protege a Corte como instituição. A preocupação se justifica: é público e notório que a eleição de uma bancada de senadores grande o suficiente para cassar ministros do STF é prioridade máxima na agenda eleitoral da ultradireita para 2026. E os cassar por quê? Não por seus deslizes, que não são poucos, mas por seus acertos.

Ainda que com alguns excessos, o Supremo foi o principal bastião em defesa do Estado de Direito contra os ataques autoritários do bolsonarismo. A recente condenação dos artífices do golpe, que já cumprem penas, foi o ponto alto dessa atuação, constituindo-se em marco histórico celebrado por democratas. A castração ou a captura de Cortes constitucionais é uma das estratégias favoritas de populistas autoritários mundo afora: viu-se recentemente com López-Obrador no México e, antes dele, com Kaczyński na Polônia, Orbán na Hungria, Morales na Bolívia e Chávez na Venezuela. Com um detalhe: em todos esses casos, os chefes do Executivo contaram com uma maioria legislativa que lhes permitiu eliminar o bloqueio dos tribunais superiores – e, muitas vezes, de outros níveis do Judiciá­rio. No Brasil, isso não ocorreu, mas esse é o objetivo declarado da ultradireita.

Quanto à cautelar, parece ser uma jogada estratégica de Mendes. Diante da possibilidade real de pedidos de vista por juí­zes simpáticos ao bolsonarismo, como Kassio Nunes Marques, André Mendonça e o recém-convertido Luiz Fux, a liminar funciona como vacina. Pedir vista, nesse caso, significa apenas manter a liminar em vigor, enquanto não se decide sobre o mérito. Não parece um bom negócio. •

Publicado na edição n° 1392 de CartaCapital, em 17 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Vacina contra o autoritarismo’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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