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Onde está Ciro?
Basta vasculhar os escândalos recentes para encontrar o presidente do PP
O crime organizado está na berlinda, graças a uma série de operações policiais e fiscais. As tramas desvendadas não são estreladas apenas por facções como o PCC. Há gente da alta roda e de colarinho branco em cena, como empresários, fundos de investimento e bancos. Há também uma coincidência em vários desses episódios. Por onde quer que se olhe, enxerga-se um político influente, o senador Ciro Nogueira, presidente de um dos maiores partidos, o PP, ministro da Casa Civil sob Jair Bolsonaro e aspirante a vice em uma chapa presidencial a eventualmente ser encabeçada pelo governador Tarcísio de Freitas, de São Paulo. Nogueira não é investigado nesses casos, mas está sempre nas imediações dos escândalos recentes. É assim nos casos da refinaria Refit, dos bancos BRB–Master e em esquemas do PCC.
A Polícia Federal tenta investigá-lo por conta de suas ligações com o dono de uma casa de apostas online. Pediu autorização ao Supremo Tribunal Federal em maio. O pedido foi distribuído à juíza Cármen Lúcia. Na polícia, comenta-se que a magistrada abriu mão do caso ou em favor de um colega de Corte ou de outra instância judicial. No STF, nada de informação. A PF colocou a mira em Nogueira após a revelação de que o senador tinha viajado à Europa no jatinho de um alvo da CPI das Bets, comissão que integrava. “É um grande empresário do meu estado, conheço ele há muito tempo. Eu me comprometo aqui com a CPI, caso nós decidamos trazer ele de volta, a encontrá-lo. É uma pessoa que reside no meu estado”, comentou o parlamentar no dia do depoimento de Fernando Oliveira Lima, o Fernandin OIG, em novembro de 2024.
O relatório final da CPI da senadora Soraya Thronicke, de Mato Grosso do Sul, apresentado em junho passado, incriminava por lavagem e associação criminosa o velho conhecido de Nogueira. Segundo o texto, a OIG, empresa de Lima, foi criada para esconder e lavar dinheiro de apostas ilegais em uma engrenagem com um pé no exterior. Para sorte do acusado, o relatório foi rejeitado, daí as conclusões não terem sido formalmente enviadas ao Ministério Público Federal. Duas semanas antes da rejeição, Nogueira havia voado em um jatinho de Lima para Mônaco, onde assistiria a uma corrida de Fórmula 1, conforme relato do site da revista Piauí. A senadora pediu a exclusão do colega da composição da CPI depois de a notícia ser publicada, mas o presidente da comissão, Dr. Hiran, de Roraima, ignorou a relatora. É das fileiras do PP.
A PF quer investigar o senador por ligações com uma bet. Depende de autorização do STF
A CPI teve acesso a relatórios do Coaf, órgão federal de combate à lavagem de dinheiro, que mostraram depósitos de 625 mil reais de Lima na conta de um ex-colaborador de Nogueira, feitos entre 2023 e 2024. Victor Linhares de Paiva trabalhou um tempo no gabinete do senador em Brasília até concorrer e se eleger vereador pelo PP em Teresina, em 2020. Seu mandato terminou em 2024 e, no início de 2025, ele assumiu a Secretaria de Articulação Institucional da prefeitura da capital piauiense na gestão de outro amigo do parlamentar, Silvio Mendes. O cargo tinha entre suas funções manter relação com autoridades. Paiva deixou-o em 3 de novembro, véspera de se tornar um dos alvos da Polícia Civil do estado em uma operação chamada Carbono Oculto 86, referência a uma batida da PF contra um esquema do PCC em São Paulo, a Carbono Oculto.
A ação de agosto da PF foi a maior realizada contra o crime organizado. Apurou um esquema que teria movimentado 52 bilhões de reais em quatro anos. O PCC usava o comércio de combustíveis para lavar os ganhos com o tráfico de drogas. O dinheiro era depositado em fundos de investimento administrados na Avenida Faria Lima, coração financeiro nacional. A movimentação era feita por meio de um banco digital, a fintech BK Bank. Paiva recebeu, via BK, 230 mil reais de dois empresários piauienses do ramo de combustíveis investigados pela Polícia Civil estadual. A dupla teve os passaportes retidos e corre o risco de ter, a qualquer momento, a prisão preventiva decretada a pedido do Ministério Público Federal.
Haran Santiago Sampaio e Danilo Coelho de Souza eram sócios em uma rede de postos de gasolina de nome “HD”, as iniciais dos primeiros nomes da dupla. A rede, que também administra postos no Maranhão e Tocantins, foi vendida, no fim de 2023, para uma empresa aberta dias antes. Segundo a polícia do Piauí, a firma de fachada é um braço do PCC. Por trás dela estariam dois fundos atingidos pela PF na operação de agosto em São Paulo. Foi na época da compra da rede HD que Paiva recebeu os 230 mil dos empresários. Enquanto se espera um esclarecimento sobre o motivo do depósito, surgiu um vídeo no qual Paiva, Sampaio e Souza confraternizam em um avião rumo à Itália.
A Refit vive da sonegação de impostos e o senador tentou facilitar ainda mais a vida dos donos da empresa – Imagem: Redes Sociais
O esquema desbaratado pelas versões nacional e piauiense da Operação Carbono Oculto inclui ainda a sonegação no comércio de combustíveis. É uma especialidade de um empresário íntimo de Nogueira: Ricardo Magro, dono da Refit, refinaria sediada no Rio de Janeiro alvejada por duas operações do Fisco neste ano e devedora de mais de 20 bilhões de reais em impostos. Duas semanas antes de a Refit ser alvo da Operação Cadeia de Carbono, realizada pela Receita Federal em setembro, Magro afirmou à Folha de S.Paulo: “O caso do Ciro é especial. Ele é um amigo que eu tenho fora da política. Claro que a gente fala de política, claro que eu me aconselho com ele, falamos de política, me aconselho com ele”.
O empresário coleciona encrencas desde os tempos em que a Refit se chamava Manguinhos. Foi advogado do ex-deputado Eduardo Cunha, político certa vez flagrado pela PF em um telefonema no qual deixava claro ser um defensor de Manguinhos na alegria e na tristeza. O Fisco tem certeza de que a Refit montou um modelo de negócios baseado na sonegação. A operação de setembro desembocou na interdição da refinaria pela Agência Nacional do Petróleo. O governador fluminense, Cláudio Castro, foi ao tribunal estadual de Justiça e conseguiu reabri-la. A liminar, posteriormente cassada em Brasília, partiu de um desembargador, Guaraci Campos Vianna, que em 2019 havia sido afastado pelo Conselho Nacional de Justiça por ter o costume de dar despachos a favor de suspeitos durante plantões no TJ, como a soltura de milicianos.
Uma nova operação contra a Refit foi realizada em novembro, a Poço de Lobato, e contou com a participação da Receita Federal e do Ministério Público paulista. Revelou uma arquitetura descrita pelos investigadores como “sofisticada”. A grana suja, oriunda de sonegação, vai para o estado de Delaware, conhecido paraíso fiscal nos Estados Unidos. Lá é mantida em fundos cujos proprietários são difíceis de identificar (em geral, outros fundos). Depois, volta ao Brasil para fazer girar a engrenagem novamente. Uma fraude tributária estimada em 26 bilhões de reais.
Nogueira agiu no Congresso para aliviar a vida da Refit, do amigo Ricardo Magro
Um dos alvos de novembro era um ex-colaborador de Nogueira. Jonathas Assunção de Castro foi braço direito do senador quando este chefiou a Casa Civil de Bolsonaro. Ocupava a secretaria-executiva da pasta. Naquela época, foi escolhido pelo Palácio do Planalto para fazer parte do conselho de administração da Petrobras. Após deixar o governo, foi trabalhar na refinaria de Magro, onde os conhecimentos adquiridos na estatal devem ter sido úteis. Uma de suas funções na Refit era fazer contato com autoridades e políticos.
A refinaria promoveu eventos e jantares em Nova York nos meses de maio de 2024 e de 2025 com autoridades brasileiras e Nogueira era um dos convidados. No evento deste ano, foi um dos palestrantes. No anterior, sua presença tinha sido mais discreta. Um mês após o convescote de 2024, o parlamentar defendeu no Congresso os interesses da Refit, embora sem citar nomes. O Senado debatia a lei dos devedores contumazes, tentativa de dar um basta justamente na estratégia de empresas que vivem da sonegação de impostos. O secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, disse em outubro passado a parlamentares que o projeto atinge “bandidos”. Na batida de novembro na Refit, os agentes encontraram uma espécie de currículo profissional e familiar de Barreirinhas, conforme noticiou o portal UOL. Descoberta que dá razão àquele comentário anterior do secretário.
Em junho de 2024, Nogueira propôs duas alterações no projeto defendido pelo Fisco. Uma excluía da caracterização de devedor contumaz aqueles setores econômicos nos quais houvesse agente estatal capaz de influenciar os preços. É o caso da refinaria de Magro, atuante no mesmo ramo da Petrobras. A outra tentava impor parecer prévio de agências reguladoras sobre a qualidade dos bens e serviços prestados pelos potenciais “devedores”. Ou seja, a ANP seria empurrada a servir de mais um biombo a favor da Refit.
Os empresários Magro e Lima têm em Nogueira um aliado. Motta, presidente da Câmara, é cria do líder do PP – Imagem: Redes Sociais, Lula Marques/Agência Brasil e José Cruz/Agência Brasil
Com outra emenda sem nomes, Nogueira defendeu os interesses do Banco Master, fechado pelo Banco Central em novembro. Apesar de a liquidação ter ocorrido agora, os problemas da instituição de Daniel Vorcaro, preso por duas semanas na Operação Compliance Zero, vinham de antes. Em meio a eles, o senador tentou tirar do papel uma norma que viria bem a calhar ao banco, que enfatizava a potenciais compradores de seus títulos o fato de os papéis serem cobertos pelo Fundo Garantidor de Crédito. Abastecido com recursos do sistema financeiro, o FGC socorre pessoas físicas e jurídicas com depósitos de até 250 mil reais em instituições em apuros. Possui 120 bilhões e a clientela do Master vai levar um terço do total, 40 bilhões. Nogueira tentou quadruplicar o limite do socorro individual para 1 milhão de reais. Valeu-se para tanto de uma proposta de emenda à Constituição que dá autonomia financeira e orçamentária ao BC.
As encrencas do Master tiveram cumplicidade do BRB, o banco estatal de Brasília, segundo o Ministério Público Federal. E, tudo indica, a cumplicidade só foi possível graças a uma teia de influências que tem Nogueira no centro. O governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, do MDB, é conterrâneo piauiense do senador e se dá bem com ele. Ao decidir concorrer ao cargo pela primeira vez, em 2018, bateu na porta do gabinete do parlamentar para contar a novidade e ouvi-lo. Quer disputar o Senado em 2026 e teve o nome lançado pelo pepista há mais de um ano. A vice-governadora do Distrito Federal, Celina Leão, é do PP, e vai querer substituir Rocha. Entrou na chapa do governador na reeleição em 2022.
Naquela última disputa, o partido de Nogueira apoiou Flávia Arruda, hoje Flávia Peres, para uma vaga ao Senado. Flávia ex-Arruda é do PL de Bolsonaro e foi colega de Planalto do hoje senador. Quando este era da Casa Civil, ela era ministra da Secretaria de Governo. Derrotada em 2022, Flávia entrou no Master como diretora de Relações Institucionais, posto que lhe dava a delegação de fazer contatos políticos. Era ainda namorada de Augusto Lima, sócio do banco até o ano passado. O presidente do BRB desde o início da gestão Rocha é outro do círculo de Nogueira: Paulo Henrique Costa, afastado por decisão judicial no dia da liquidação do Master. Os negócios do BRB nos últimos dois anos passarão por uma “auditoria minuciosa” do BC, por ordem judicial. O sucessor de Costa, Nelson Souza, fez, aliás, carreira no Piauí e tem laços com o parlamentar.
Pairam ainda as denúncias do piloto Mauro Caputti Mattosinho em uma investigação sobre o PCC
Em março, o BRB havia anunciado a compra de 49% do Master, negócio que, para o MPF, tinha por objetivo salvar o banco privado e acobertar fraudes financeiras. Antes de ser proibida pelo BC, a aquisição foi examinada no órgão federal chamado de “xerife da concorrência”. O Cade aprovou-a em junho. Seu presidente era Alexandre Cordeiro, a quem Nogueira certa vez chamou, em um telefonema de teor conhecido da PF, de “meu menino”. “Eu botei ele lá”, teria dito. Cordeiro ficou no Cade de 2015 até a análise do caso Master–BRB. Para o negócio entre os dois bancos ser concretizado, faltava o aval do Legislativo de Brasília, o que aconteceu em agosto por obra de Rocha, e do BC.
A Câmara dos Deputados pressionou o Banco Central. Nogueira tem grande influência sobre o presidente da Casa, Hugo Motta. O líder do governo no Senado, Jaques Wagner, do PT, comentou certa vez que Motta era “cria” do piauiense. O deputado segurou o quanto pôde a lei dos devedores contumazes. Só deixou o projeto andar, com a designação de um relator, após a investida de novembro do Fisco contra a Refit. A chefe de gabinete de Motta é irmã de Cordeiro, o “menino” de Nogueira, e antiga colaboradora do senador e do PP. Sabá Cordeiro também chefiou o gabinete do pepista na Casa Civil. A propósito, quando o congressista era ministro, nomeou Anelize Lenzi Ruas de Almeida para a assessoria especial de Jair Bolsonaro. Almeida comanda hoje a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e é cotada para ser advogada-geral da União no lugar de Jorge Messias, caso este seja aprovado para a vaga no Supremo Tribunal Federal.
O método escolhido por deputados para forçar o BC a liberar a compra de parte do Master pelo BRB foi um pedido de urgência na votação de uma lei que poria fim à autonomia da autoridade monetária e permitiria demitir seus diretores. À frente do pedido, Cláudio Cajado, do PP da Bahia. Cajado foi o substituto de Nogueira no comando do PP, quando o senador assumiu a Casa Civil de Bolsonaro. A ameaça não deu certo. A lei não foi votada, nem o BC se dobrou. Proibiu a aquisição de parte do Master pelo BRB e, dois meses depois, fechou a instituição privada.
A Carbono Oculto 86, no Piauí, alcançou um antigo auxiliar do senador, cujos tentáculos também chegam ao Banco de Brasília – Imagem: Paulo H. Carvalho/Agência Brasília e SSP/GOVPI
Cajado foi o autor do texto final da PEC da Blindagem, aquele escândalo que a Câmara aprovou em setembro para proteger congressista fora da lei. O correligionário de Nogueira estendeu o escudo a presidentes de partido. O senador é um cacique partidário e sua reeleição no ano que vem será difícil no estado mais lulista do Brasil. Se bem que, para não ficar sem mandato e manter prerrogativas parlamentares, pode optar por voltar a ser deputado, cargo exercido entre 1995 e 2010. Há outro chefe partidário a quem a proteção faria bem, caso não tivesse sido engavetada no Senado. É Antonio Rueda, do União Brasil, que não tem mandato. Rueda e Nogueira são, digamos, sócios atualmente. Selaram um acordo para os respectivos partidos montarem uma federação, ou seja, atuarem por quatro anos como se fossem uma legenda só.
O presidente do UB tem motivos para se preocupar com as garras da lei? A Operação Overclean, levada adiante pela PF desde dezembro de 2024, apura desvio de verba de emendas parlamentares por parte, sobretudo, de políticos de seu partido. Um dos personagens na mira é um empresário conhecido como “Rei do Lixo”. José Marcos Moura filiou-se ao União Brasil em 2023 e entrou para a direção da sigla após Rueda assumir a presidência, no ano passado. Foi preso na primeira fase da Overclean e posteriormente solto. A seu pedido um avião teria decolado de Salvador rumo a Brasília com 1,5 milhão de reais em dinheiro vivo, recursos apreendidos pela PF uma semana antes de a operação ganhar as ruas.
Nogueira é dono de um jatinho. Ou era até a eleição de 2018, quando declarou à Justiça Eleitoral possuir um patrimônio de 23 milhões de reais, dos quais 2,8 milhões referentes a uma aeronave. E Rueda, tem avião? Um piloto que diz ter prestado serviços para o esquema do PCC descoberto na Operação Carbono Oculto jura que sim. Mauro Caputti Mattosinho, um filiado do PSOL, declarou ao ICL Notícias, e depois em depoimento à PF, que não apenas pilotou jatos de Rueda usados pela facção criminosa paulista. Também teria ouvido o nome de Nogueira durante um voo, no qual uma sacola de dinheiro era transportada para Brasília. Rueda tem negado desde então a alegação do piloto.
Nogueira foi procurado por CartaCapital, por meio da assessoria de imprensa, para esclarecer os fatos abordados nesta reportagem. Não houve resposta. •
Publicado na edição n° 1391 de CartaCapital, em 10 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Onde está Ciro?’
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