Economia
Um passo civilizatório
A pobreza, ainda infame, atinge o menor patamar da série histórica
Em 2024, os níveis de pobreza e extrema pobreza atingiram o menor patamar da série história iniciada em 2012, anunciou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística na terça-feira 3. A parcela da população em extrema pobreza recuou de 4,4% para 3,5%. Restam 1,9 milhão de compatriotas nessa situação. No caso da pobreza, a queda foi mais expressiva, de 27,3% para 23,1%, ou 8,6 milhões de brasileiros. O avanço civilizatório não foi produzido apenas pelos programas sociais tipo Bolsa Família. “Mais de 70% da renda domiciliar per capita vem do trabalho. Quando o mercado de trabalho está dinâmico, isso impacta diretamente na renda das famílias”, afirmou André Geraldo de Moraes Simões, pesquisador do IBGE, durante a apresentação dos resultados.
Um estudo recente do Ipea, intitulado Pobreza e Desigualdade no Brasil no Curto e no Longo Prazo, de Pedro H. G. Ferreira de Souza e Marcos D. Hecksher, vai um pouco além e reúne dados impressionantes sobre a queda da pobreza no Brasil nos últimos 30 anos. O País “melhorou bastante”, atestam os autores do estudo. Nas três décadas entre 1995 e 2024, a renda média cresceu cerca de 70%, o coeficiente de Gini recuou quase 18%, e a taxa de pobreza extrema baixou de 25% para o patamar atual nas pesquisas domiciliares. Um progresso, acrescentam os pesquisadores do Ipea, não linear e concentrado em dois períodos bem demarcados, os anos entre 2003 e 2014 e, mais recentemente, a retomada pós-pandemia entre 2021 e 2024.
Um gráfico do estudo mostra que a renda média aumentou nos governos petistas, estagnou durante o período de Temer, caiu na gestão Bolsonaro e voltou a subir com Lula 3. Os autores destacam a importância das políticas sociais, especialmente o Bolsa Família e o BPC, para reduzir a miséria. Sem esses programas, a taxa de extrema pobreza seria de 11,2%. Os aumentos reais do salário mínimo, ocorridos nos governos do PT, não são mencionados.
A queda no desemprego foi um fator essencial
Os dados mostram que, no período considerado, a renda média domiciliar per capita caiu no governo FHC, de 1.191 para 1.141 reais. E cresceu nas gestões de Lula e Dilma, de 1.141 para 1,8 mil reais. Depois, estabiliza nos governos Temer e Bolsonaro, cai bastante na pandemia, sobe com o auxílio emergencial oferecido à época e volta a subir com Lula.
Em relação ao coeficiente de Gini, prossegue o economista, a lógica é a mesma. O índice mede a concentração de renda e varia de 0 a 100: quanto maior o número, maior a desigualdade. Em 1960, o Gini brasileiro estava em torno de 50. Na década de 1970, em meio ao “milagre econômico”, subiu para 60 e permaneceu nesse patamar elevado até o início dos anos 2000. A queda significativa ocorre no governo Lula, quando passou de 59 em 2003 para 52 em 2014. Com Temer, volta a subir. E só volta a cair de novo na pandemia, por conta dos programas emergenciais, e na gestão Lula em 2023 e 2024. Os autores do trabalho fazem essa distinção de passagem.
O trabalho não escapa, porém, de críticas. Nas considerações finais, há o que parece ser um tributo ao Plano Real como o marco inicial do processo de melhora. Um papel duvidoso, pois, sublinha o economista Eduardo Fagnani, “a desigualdade piorou no período considerado do plano, a renda per capita se deteriorou e a pobreza se manteve em patamar elevadíssimo”.
“O estudo do Ipea é importante. A redução da pobreza e a melhora das condições sociais, isso tudo é muito relevante e eles estão frisando. Este é o ponto fundamental”, afirma o economista Waldir Quadros, professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Cesit. O trabalho periodiza até 2014, depois o governo Dilma, o período Temer, até chegar no de Bolsonaro, aí vem a pandemia, “um arrasa-quarteirão”. No último ano de governo, Bolsonaro eleva o gasto público, por isso, em 2021, a economia dá uma melhorada e, em 2022, entra no terceiro governo Lula. “No geral, está certo”, prossegue Quadros. “Tenho duas observações. A primeira delas é que os autores falam, e insistem, em redução da desigualdade social. Eu acho que não dá para concluir isso a partir dos dados utilizados. Na verdade, penso que ocorreu o contrário, apesar de a situação ter melhorado, principalmente nas camadas populares. Os ricos não estão representados na PNAD. Como reduziu a desigualdade se não tem rico no universo pesquisado? Então é uma redução entre os não ricos”, conclui Quadros, autor de importante série de estudos de mobilidade que se diferenciam dos demais por levarem em conta que a renda dos inquéritos domiciliares é declaratória, sem comprovação. Uma particularidade que conduz à subdeclaração nas camadas superiores de renda.
Um estudo do Ipea mapeia a queda da pobreza em 30 anos
“Claro que há um avanço, mas não é redução de desigualdade. O termo é inapropriado”, sintetiza Quadros. A mesma limitação se manifesta na melhora do índice de Gini, apurado com “uma renda declarada em que não entra rico”. O economista ressalta ainda o fato de os autores do estudo afirmarem que “uma parte da melhora foi pelas políticas sociais. Corretíssimo. Mas eles não mencionaram, pelo menos eu não vi na minha leitura, o salário mínimo, acima da inflação”. Uma busca pelo termo aponta que o texto não menciona salário mínimo. Para Quadros, “o aumento real do salário mínimo foi a principal política social. Muito mais do que o Bolsa Família. Segundo a minha metodologia, esse programa não tira ninguém da extrema pobreza, fica apenas uma miséria assistida. Que foi muito importante, e novamente tirou o Brasil do Mapa da Fome. Tem benefícios, e não precisa ficar insistindo nisso. Mas não dá para falar de políticas sociais sem mencionar o salário mínimo”, ressalta o professor.
Um fator decisivo, não considerado pelos autores do trabalho “e por mais ninguém”, é a desindustrialização ocorrida no período. “É por causa da desindustrialização que nós estamos nessa situação de baixa performance. Melhora, mas melhora dentro de uma situação muito precária”, frisa Quadros. Sem indústria, observa, “não tem emprego de qualidade, fica esse rame-rame. Tem muita informalidade, muito trabalho de quebra-galho”.
“O trabalho é muito bom, só que, como se considera o período de 1995 a 2024, quando você analisa no detalhe, percebe que as melhoras não ocorrem de forma homogênea e constante no período todo”, destaca Fagnani. “Na forma como os dados são apresentados, é como se esses indicadores tivessem uma evolução constante ao longo de três décadas. Não é verdade”. •
Publicado na edição n° 1391 de CartaCapital, em 10 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um passo civilizatório ‘
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