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Putin garante estar pronto para a guerra, enquanto os europeus se preparam para um confronto com a Rússia

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Alerta. O conflito é “uma realidade presente”, afirma o francês Emannuel Macron – Imagem: Lodovic Marin/AFP
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O presidente da Rússia, ­Vladimir Putin, afirmou na quarta-feira 3 que seu país está pronto para uma guerra com a Europa “agora mesmo”. A declaração foi dada menos de uma semana depois de o presidente da França, Emmanuel Macron, ter dito que “a guerra é uma realidade presente” no continente, não uma projeção para um futuro distante. A escalada nas provocações políticas não é apenas discursiva. Dos dois lados, crescem os preparativos para o que muitos projetam como um confronto inevitávelhttps://www.cartacapital.com.br/mundo/maioria-dos-europeus-acredita-na-possibilidade-de-guerra-com-a-russia-diz-pesquisa/.

Macron fez um dos movimentos claros nessa direção ao anunciar, na quinta-feira 27, um novo programa de alistamento militar com o qual pretende dissuadir Putin de avançar sobre os integrantes da União Europeia e da Otan. No mesmo dia, o presidente russo refutou as ameaças atribuídas a ele: “Soa ridículo. Nunca tivemos essa intenção”. Mudou, no entanto, o tom e, diante das dificuldades impostas pelos líderes europeus ao processo de negociação de paz com a Ucrânia, intermediada pelos Estados Unidos, passou a dizer que “não sobraria ninguém” no Velho Continente com quem negociar se seu país partisse para cima.

Há um aumento nas despesas militares e no recrutamento de novos soldados

Putin oscila entre os papéis de vítima, quando se apresenta como um presidente acuado pelo avanço hostil da Otan na direção das fronteiras russas, e de agressor, quando reivindica para si o território alheio, ressuscitando parte do brio perdido após o fim da era soviética. Nos momentos de maior docilidade, queixa-se da desconfiança dos europeus em relação a Moscou. Macron não confia em ­Putin, pois se considera traído. Em agosto de 2019, recebeu o colega russo com enorme deferência em Brégançon. Naquele momento, Putin estava há cinco anos excluído do G7, como punição pela primeira das duas invasões à Ucrânia. Mesmo assim, o líder francês estendeu um tapete vermelho, numa reunião bilateral de grande visibilidade, às vésperas da cúpula do G7, que aconteceria dias depois, a apenas 800 quilômetros dali, em Biarritz. O gesto foi uma penhora de apoio político em um momento no qual Putin era muito contestado. Macron acreditava ainda ser possível manter pontes entre a Otan e Moscou. “Estou convencido de que o porvir da Rússia é plenamente europeu. Nós acreditamos nessa Europa que vai de Lisboa a Vladivostok.” Apenas três anos depois, a Rússia partiria para a invasão total da Ucrânia, lançando a maior e mais sangrenta guerra em solo europeu desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945.

Assim como Macron, nenhum líder europeu confia hoje em Putin. Com exceção talvez do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, todos os demais têm receio de que os russos ampliem para o restante do continente a guerra travada há quatro anos contra os ucranianos. Como prova, mencionam uma série de ações cada vez mais hostis empreendidas por Moscou. O ministro britânico da Defesa, John Healey, acusou o presidente russo de coletar informações cartográficas sobre a localização dos cabos submarinos de comunicação da Europa. A evidência seria a presença do navio oceanográfico russo Yantar, acusado por Healey de penetrar por duas vezes neste ano as águas britânicas. A embarcação é equipada com pequenos submarinos e navega acompanhada de uma aeronave do tipo Poseidon, usada para monitoramento marítimo. “Aqui vai meu recado para Putin: nós o vemos e nós estamos preparados”, disse o secretário britânico, em uma declaração ainda mais direta e enérgica que aquelas de Macron.

Inspiração. O exército francês vai guiar-se pelo modelo adotado pela Noruega – Imagem: Eva Sénéchal/Exército da França

Na França, o plano é acrescentar 2 bilhões de euros ao atual orçamento das Forças Armadas e fazer o número de jovens ligados ao alistamento voluntário chegar a 3 mil no próximo ano, 10 mil em 2030 e 50 mil em 2035. O recrutamento só se tornará obrigatório em caso de guerra. Segundo o governo francês, o novo modelo de alistamento se inspira na Noruega. Os nórdicos e os bálticos estão especialmente alarmados com o risco de uma ação russa na Europa, como demonstra o fato de a Finlândia ter aderido à Otan em 2023 e a Suécia em 2024. Além disso, Estônia, Letônia e Lituânia, além de Polônia e Finlândia, abandonaram o Tratado de Ottawa, adotado nos anos 1990 para proibir a fabricação, a estocagem, a transferência e o uso das minas antipessoal, aquelas que ficam enterradas no solo e podem explodir com o peso do corpo humano. A decisão faz os esforços humanitários recuarem mais de 30 anos em um continente que liderava a promoção desse tipo de tratado, inclusive com o engajamento de figuras de destaque, como Lady Di, que militou pessoalmente contra as minas.

“A percepção de ameaça é real”, disse a editorialista do jornal Le Monde, Sylvie Kaufmann, em entrevista à France Inter, mencionando ações de sabotagem em sistemas informáticos, manipulação de eleições, campanhas de desinformação na internet atribuídas a agentes russos em diversos países da Europa e até sobrevoos com drones em regiões de fronteira. “Logo a questão vai se colocar: a partir de que ponto essa guerra híbrida será considerada um verdadeiro ataque contra um membro da Otan?” – o que justificaria a evocação da cláusula segundo a qual um ataque contra um participante da aliança deve ser respondido por todos os demais –, pergunta Kaufmann.

O país mais alarmado talvez seja a Polônia, que tem na memória a invasão das tropas alemãs, num dos primeiros atos da Segunda Guerra Mundial, em 1939. Lá o governo instituiu programas de treinamento para o uso de armas de fogo entre adolescentes nas escolas. Nesses cursos, jovens a partir dos 14 anos aprendem a manusear fuzis de uso exclusivo das Forças Armadas. Na Dinamarca, o serviço militar, obrigatório para os homens, passou a ser indispensável também para as mulheres. Na Finlândia, ginásios subterrâneos ganharam adaptações para ser convertidos em abrigos em caso de guerra nuclear.

Nenhum líder europeu confia em Moscou

O ambiente de mobilização foi tão longe que o chefe do Estado-Maior francês, general Fabien Sudry, disse recentemente que as mães de seu país devem estar preparadas a partir de agora para perder seus filhos. O militar afirmou ter chegado a hora de “dizer as coisas como elas são”, em vez de edulcorar as informações à sociedade. De acordo com ele, que ocupa o posto mais alto nas Forças Armadas do país, a França tem todas as condições militares e econômicas para “dissuadir o regime de Moscou”, mas é preciso que a sociedade esteja coesa diante da possibilidade das perdas.

A falta de tato do general foi criticada por autoridades políticas, mas não as afirmações de fundo que, na França e em toda a Europa, motivam uma corrida às armas e às trincheiras de uma guerra que, a julgar pelos preparativos, parece se divisar no horizonte.

A volta de Donald Trump à Casa Branca foi marcada por um giro nos compromissos dos Estados Unidos com a Europa. Se, sob a administração de Joe ­Biden, não havia dúvida da solidez da Otan e do apoio incondicional à Ucrânia, com Trump o discurso mudou: a defesa dos europeus passou a ser tratada como um assunto eminentemente do continente e o socorro aos ucranianos tornou-se duvidoso. Ambos os movimentos foram acompanhados de uma abertura complacente e compreensível em relação aos interesses russos, que passaram a ser acomodados com maior conforto no discurso norte-americano.

Morde-e-assopra. Putin alterna os papéis de vítima e agressor – Imagem: Sergei Ilnistky/AFP

Putin tira vantagem dessa mudança e tenta colocar a Europa como uma antagonista belicista que atua contra os esforços de paz empreendidos por Washington­ e Moscou. No discurso russo, está tudo certo para a guerra na Ucrânia chegar logo ao fim, só que os europeus estão atavicamente comprometidos com a ideia de confrontar o inimigo. A tese só para de pé para quem cogita que os ucranianos abram mão de mais de 20% do território e de sua soberania, ao aceitar que Moscou determine qual deve ser o tamanho máximo de suas forças armadas e a quais alianças militares o país pode ou não se filiar.

A paz de Putin só é possível, portanto, com a Ucrânia em uma posição subalterna. Para a Europa, trata-se de uma concessão inadmissível, que premia uma agressão ilegal a um país soberano e encoraja novas hostilidades contra o restante do continente. •

Publicado na edição n° 1391 de CartaCapital, em 10 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Parabellum

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