Mundo
“Ninguém vai me calar”
A brasileira Marina Lacerda, uma das vítimas de Jeffrey Epstein, explica a razão de expor o próprio drama
Em resposta aos escândalos do financista Jeffrey Epstein, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos tem até 20 de dezembro para decidir o que será revelado ao público. Documentos vitais, entre eles transcrições inéditas dos grandes júris e materiais jamais tornados públicos, ficarão disponíveis, em meio a pressões políticas e resistências locais. No epicentro está Marina Lacerda, sobrevivente brasileira, não apenas como testemunha, mas uma voz que desafia o silêncio. Durante anos, ela foi conhecida como a “Vítima Menor-1”, mas, em setembro deste ano, ela decidiu renunciar ao anonimato e tomou as rédeas de sua própria história. A brasileira tinha 14 anos quando foi abusada pelo financista. Hoje, aos 37 anos e mãe de uma menina de 12 anos, luta contra a impunidade. “Se ficarmos caladas, os predadores vão continuar agindo, abusando”, afirma.
CartaCapital: Em 19 de novembro, o presidente Donald Trump sancionou a Lei de Transparência dos Arquivos Epstein. Quando pensa nesse prazo de 30 dias para decidir o que será realmente aberto ou mantido em sigilo, o que vem primeiro à mente: medo de nova ocultação ou esperança de justiça?
Marina Lacerda: Honestamente, estou um pouco preocupada com o que vai acontecer? E, assim como as outras vítimas, me pergunto por onde esses documentos andaram, porque foram jogados de um lado para o outro o tempo todo. Tememos que edições sejam feitas, de fato, não para proteger as sobreviventes, mas para defender Trump, os amigos dele e outros envolvidos de alto perfil. E estamos bem apreensivas, tentando entender por que Trump assinou a liberação logo depois do shutdown do governo e, ao mesmo tempo, parece estar disposto a abrir uma investigação sobre o caso. A sensação é de que a luta está só no começo. Sei que, para algumas das outras sobreviventes, essa luta começou faz muito tempo, mas agora é como se fosse outra batalha, em outro nível, e estamos nos preparando para enfrentar.
É uma luta para as “futuras gerações”
CC: Essa rede de poder finalmente está sendo exposta ou ainda parece que o sistema protege “clientes” e cúmplices?
ML: Sinto que o sistema ainda protege certos clientes. E por isso estamos preocupadas com essas edições. Mas, sabe, por mais que eles possam tentar proteger os envolvidos, acredito que, com o tempo, tudo virá à luz. E, se gente como Larry Summers teve de se abrir e dizer: “Ei, eu fiz parte disso”, então, sinto que alguns vão se apresentar e quem não o fizer, com certeza, será exposto.
CC: O que gostaria de dizer às outras sobreviventes, especialmente meninas migrantes e de famílias pobres, que veem tudo isso de longe?
ML: Minha maior preocupação é que, como mulheres latinas, precisamos entender que não podemos permanecer em silêncio. Muitas vezes ficamos caladas porque temos medo, porque sentimos vergonha e, infelizmente, eles se aproveitam muito mais dos imigrantes. Muitas vezes temos medo de falar por não termos documentação legal ou por sermos desacreditadas. Quando comecei a falar, na minha primeira vez em setembro, até sobrevoavam aviões para silenciar a gente. Agora, na segunda coletiva de imprensa, havia motos barulhentas passando para tentar nos calar. Isso mostra o quanto precisamos estar alertas. Se ficarmos caladas, os predadores vão continuar agindo, abusando não só de mulheres jovens, mas de homens, crianças, meninos e de mulheres que são maiores de idade, que muitas vezes sentem pressão para dizer sim. É importante que tanto mulheres quanto homens aprendam a estabelecer limites, saber quem são e entender o que são tráfico humano, abuso sexual, estupro, abuso físico. Precisamos trazer isso à luz para que todos entendam, e por isso que decidi quebrar o silêncio, por mim, por minha filha de 12 anos, por todas as mulheres sobreviventes. Nas redes sociais, vejo muitos comentários de mulheres me atacando, me culpando por ter voltado. Quero deixar claro: ninguém está ganhando dinheiro com isso. Tiramos do próprio bolso, pagando hotéis e passagens para lutar por uma causa para as futuras gerações. Muitas famílias têm medo de abordar esse assunto com os filhos, pensando que vão normalizar o sexo, mas não é sobre isso. O que queremos é abrir as mentes para que entendam o que é abuso, para que saibam quando algo não está certo. Eu sou uma das poucas brasileiras que falaram publicamente e, apesar de todo o desafio, continuarei falando para que essa causa avance.
Intimidade. Trump era um dos tantos e assíduos frequentadores das festas organizadas por Epstein, o magnata que cometeu suicídio na cadeia – Imagem: Davidoff Studios/AFP
CC: Você se lembra de ver o presidente Donald Trump ou ouviu outras meninas falando sobre ele?
ML: Naquela época, Jeffrey Epstein tinha fotos com muita gente. Com o ex-presidente Bill Clinton, com o príncipe Andrew, da Inglaterra, com vários atores e atrizes, inclusive com Donald Trump. Mas, honestamente, não me lembro, pessoalmente, de tê-lo visto ou escutado qualquer coisa especificamente sobre ele. Mas é fato confirmado que Trump passou horas na casa de Epstein com outra jovem. Existem muitas informações sobre isso, mas sabe qual a grande questão: será mesmo que o público está disposto a aceitar? Será que ele está pronto para esses arquivos? Esse é o problema. Sabe por quê? À luz de tudo e de todos, Trump desrespeita mulheres, ele não hesita, não se importa, não há constrangimento. Há poucos dias, por exemplo, ele não gostou da forma que uma repórter da rede de tevê ABC fez uma pergunta a respeito do caso Epstein, e ele a humilhou diante de todos. Na mesma semana, também mandou outra repórter se calar e a chamou de ‘porquinha’ durante um voo. Esse é o presidente dos Estados Unidos, esse é o líder de um país que o mundo inteiro observa. E, sabe, talvez ele seja um bom empresário ou até um bom presidente, mas Trump trata as mulheres da pior forma possível e o faz publicamente. Estamos em 2025, mas ele age como se estivéssemos nos anos 1950.
CC: Diante de tudo isso, minha última pergunta, mas não a menos importante: como você está?
ML: Surpreendentemente, eu tenho que dizer que nunca me senti tão empoderada. Tenho que agradecer a todas as minhas irmãs sobreviventes que estão comigo. Realmente, amo compartilhar minha história, falar sobre cultura, sobre os direitos das mulheres, porque quero que façamos essa mudança juntas. Sou muito grata por poder falar, porque nossa voz está sendo ouvida e há muito tempo não era. Então, respondendo à sua pergunta: obrigada, eu me sinto confiante e sei que não estou derrotada. Ninguém vai me calar. A gente não vai ficar em silêncio. •
Publicado na edição n° 1391 de CartaCapital, em 10 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘“Ninguém vai me calar”’
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