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Queima de estoque

Cláudio Castro divulga lista de imóveis a serem leiloados no estado

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Deu a louca no gerente? Sem caixa para a campanha de 2026, Castro quer passar nos cobres o Maracanã, entre outros. Tudo a preço de banana – Imagem: Pablo Porciúncula/AFP e Rogério Santana/GOVRJ
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Com uma dívida de 193 bilhões de reais e previsão de déficit de 18,9 bilhões no próximo ano, o governador Cláudio Castro decidiu promover uma liquidação de imóveis pertencentes ao estado do Rio de Janeiro naquela linha “deu a louca no gerente”. Embora de valor estético e simbólico inestimável, os 61 bens listados pelo governo renderão aos cofres públicos, segundo os cálculos oficiais, a pechincha de 5 bilhões de reais, nem a metade da parcela anual de 12 bilhões transferida à União por conta da última renegociação. Estão incluídos, entre outros, o Estádio do Maracanã e a gare da Central do Brasil, ícones arquitetônicos da capital fluminense. A Black Friday de Castro tem ainda tons de perseguição política ao engordar o pacote com as sedes de entidades históricas de direitos humanos, incluídos os grupos Tortura Nunca Mais e Arco-Íris. A pressão popular levou o presidente da Assembleia Legislativa, Rodrigo Bacellar, a adiar a votação da proposta. Após a prisão de Bacellar na quarta-feira 3, por ter vazado uma operação da Polícia Federal que visava um colega deputado, não se sabe ainda quando o Parlamento voltará ao tema.

Até lá, a oposição tentará mobilizar a sociedade contra o projeto, que tem como ponta de lança o líder do governo e presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia, Rodrigo Amorim. Depois de negociar um acordo para retirar a maioria dos itens considerados polêmicos da lista, o parlamentar do União Brasil, famoso por quebrar uma placa de rua com o nome da vereadora assassinada Marielle Franco, permitiu a reinclusão de alguns imóveis. “O acordo firmado na CCJ é institucional e foi respeitado. Outra coisa é o plenário, onde a proposta pode ser emendada”, justifica.

Outros bens listados são os estádios Nilton Santos e Caio Martins e a Rodoviária Novo Rio, além de renomados prédios de produção de conhecimento, como a Escola de Música Villa-Lobos, a Escolinha de Arte do Brasil e o Instituto Politécnico da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. “Conseguimos acertar na Comissão de Constituição e Justiça a criação de um grupo que fez vistorias nos locais com o intuito de excluir aqueles que comprovadamente demonstrassem que têm equipe, cumprem função importante e têm convênio de atendimento com órgãos públicos”, garante Carlos Minc, do PSB.

Minc coordenou as vistorias em locais onde hoje funcionam entidades que ­atuam há décadas na defesa dos direitos humanos incluídas na lista. Entre os itens postos à venda por Castro estão as sedes do Grupo Tortura Nunca Mais, que, entre outras coisas, atua pelo fim da arbitrariedade policial, do Grupo Arco-Íris, pioneiro na promoção da diversidade sexual­ e dos direitos humanos da comunidade LGBT+, da Casa Nem, centro de acolhimento a trans em condição de vulnerabilidade social, a Casa Almerinda Gama, que atende mulheres vítimas de violência doméstica, e a Aldeia Maracanã, ponto de referência para as comunidades indígenas.

Há um viés ideológico no projeto, que prevê desalojar organizações de direitos civis

Para impedir a liquidação, a oposição denuncia o descumprimento de leis federais sobre compra e venda de imóveis. “Seja governo estadual ou prefeitura, para vender algum imóvel, tem de ter previamente uma avaliação técnica do valor. É uma regra anticorrupção”, diz Minc. Feita a avaliação, Castro, instigado pela Procuradoria-Geral do Estado, determinou a retirada de diversos itens, mas uma parte foi novamente incluída pelas emendas da base governista. “O projeto está mutilado na sua essência por tudo aquilo que foi acrescido. Os acréscimos de imóveis no projeto são inconstitucionais, pois não se originam no Executivo, mas no Parlamento. Também não consta, em cada um desses projetos, a avaliação do imóvel”, pondera Luiz Paulo Corrêa da Rocha, do PSD. Segundo ele, a inserção de alguns imóveis tem viés político e ideológico. “A inclusão do Maracanã e da Central do Brasil visa um confronto com a prefeitura do Rio. Há outras que buscam um confronto direto com a Uerj, foco de oposição ao governo. E há o terceiro grupo, que inclui o Tortura Nunca Mais.”

Amorim não esconde as intenções da base governista. “Cumpri o compromisso de não politizar a CCJ, mas essa é a minha pauta ideológica e vou defendê-la. Quem quiser fazer militância que faça com as suas próprias expensas, não com dinheiro público.” O deputado afirma considerar “inadequada” a manutenção da sede do Tortura pelo Estado e diz que vai “liderar uma articulação conservadora” para aprovar a venda. “Quero que esse imóvel seja alienado o mais rápido possível. Vai servir como caráter pedagógico para que outros grupos entendam que militância se faz com recursos próprios.”

Fundadora do grupo, a psicóloga Cecília Coimbra afirma que a proposta parte da concepção de “uma extrema-direita fascista que quer silenciar todo e qualquer tipo de diferença”. A ONG não descarta a possibilidade de processar Amorim. “O deputado levanta calúnias quando diz que vivemos à custa do Estado. Ocupamos a sede há 31 anos em regime de comodato, cedido na época do governo Brizola, com o qual, aliás, tínhamos diferenças. Nunca nos aliamos a partido político ou governo estadual, municipal ou federal. Vivemos de doações e temos como princípio manter nossa independência e autonomia”, esclarece.

Integrante da direção do Tortura Nunca Mais, o historiador Rafael Maul afirma que a luta agora se dará em duas frentes. “Vamos tentar um caminho de diálogo e convencimento com os parlamentares, para que não seja levado adiante. Politicamente, queremos sensibilizar a sociedade civil, o Parlamento e os poderes executivos. Em termos jurídicos, estamos organizando algumas estratégias com advogados. Não posso adiantar quais seriam, mas estão colocadas em termos da garantia do direito à memória e à justiça.” O objetivo, diz, é debater a necessidade de se garantir espaços de funcionamento a entidades que foram ou ainda são responsáveis por exercer uma função primordial para a construção democrática do Estado. “Como uma organização responsável por essas políticas perde o direito de ter um espaço para existir?”, questiona. “Vamos acionar os sistemas internacionais para se pronunciarem e pressionar, se for necessário.” •

Publicado na edição n° 1391 de CartaCapital, em 10 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Queima de estoque’

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