Política
Doutores contra o Zé Gotinha
No Brasil, até médicos propagam fake news a respeito da vacinação
Referência mundial em vacinação antes da dupla tragédia da Covid–19 e do negacionismo do governo Bolsonaro, o Brasil luta para retomar os antigos índices de imunização. Doenças antes consideradas erradicadas ou sob controle voltaram a assombrar. No ano passado, a coqueluche matou 21 crianças. Segundo os levantamentos oficiais, em dois anos, 64 brasileiros perderam a vida por falta de doses adequadas das vacinas. O movimento antivax, crescente em escala global, ganha um caráter peculiar no País. Médicos negacionistas tornaram-se grandes propagadores do medo na população. No fim de novembro, a Advocacia-Geral da União acionou extrajudicialmente a Meta, controladora do WhatsApp, Instagram e Facebook, para a suspensão dos conteúdos divulgados por três médicos: Roberto Zeballos, Francisco Cardoso e Paulo Porto de Melo.
Segundo o Ministério da Saúde, a queda na vacinação começou a partir dos cortes nos investimentos feitos no governo de Michel Temer. O quadro agravou-se na pandemia, quando a administração Bolsonaro boicotou a imunização ao mesmo tempo que estimulou tratamentos “alternativos” não referendados pela comunidade científica para a Covid–19, como o uso de Ivermectina, Cloroquina e Hidroxicloroquina. “A vacinação no Brasil sempre foi muito exitosa. Temos o Programa Nacional de Imunização, que é robusto, com uma boa capilaridade do conteúdo internacional, grande diversidade de vacinas e com cobertura em todo o País. Mas, entre 2015 e 2016, a gente começa a registrar uma queda de cobertura para as vacinas de rotina. E as causas são multifatoriais”, salienta Eder Gatti, diretor do Departamento do PNI, citando problemas de acesso, desestruturação da atenção primária e inconstância no abastecimento das doses, além da disseminação de informações falsas que colocam em dúvida a credibilidade das vacinas.
“Na pandemia, tivemos um direcionamento do sistema de saúde que comprometeu vários serviços do SUS, inclusive a vacinação. A hesitação vacinal ganhou mais um aliado, a desinformação, que questiona a confiança das vacinas, comprometendo a cultura de imunização que construímos ao longo da história. Ainda hoje, a gente observa movimentos articulados de fake news acontecendo em momentos de campanhas nacionais, como na vacinação contra a gripe. Isso compromete bastante”, lamenta Gatti. O Ministério da Saúde, acrescenta, tem investido fortemente em campanhas de comunicação voltadas para conscientização da população sobre a importância da imunização, além de realizar um monitoramento minucioso para identificar a disseminação de notícias falsas contra vacinas e, na sequência, levar os responsáveis à Justiça.
A imunização no País, antes referência mundial, caiu de forma drástica
Para a grande maioria das vacinas, o ideal de cobertura é de ao menos 95% do público-alvo. Segundo o médico Eduardo Jorge da Fonseca, presidente do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria, alguns imunizantes voltados para crianças estão com cobertura bem abaixo desse índice, oscilando entre 80% e 85%. “Se uma doença de alta contaminação, como o sarampo, encontrar 10% das crianças que eram para estar vacinadas e não foram, temos um risco de isso se transformar em uma epidemia de forma rápida.” Embora o número de casos de sarampo esteja em crescimento no mundo inteiro, principalmente nos Estados Unidos, Canadá e México, o Brasil recebeu o certificado da OMS de país livre. “A gente começou a bater algumas metas em 2024, como na vacina de BCG e Tríplice Viral. E, desde o ano passado, conseguimos a certificação. O Brasil teve um surto de sarampo de 2018 a 2022 e depois parou, graças à vacinação que intensificamos. Agora, a gente está numa corrida frenética para não deixar a doença entrar novamente no País, considerando que ela está descontrolada no mundo”, esclarece Gatti.
“As vacinas são vítimas do seu próprio sucesso. Os pais que hoje estão na casa dos 30 anos não tiveram a convivência com os colegas com poliomielite, meningite, sarampo, não viram um primo falecer de uma doença infecciosa. Isso acabou passando a falsa impressão de que as doenças estavam controladas e que os eventos adversos, normalmente leves e transitórios, como febre e dor local, eram mais importantes que a proteção da doença. Essas pessoas perderam a percepção de risco e passaram a considerar os eventos adversos como mais importantes do que a vacinação”, ressalta Fonseca, ao destacar a urgência de combater a desinformação. “A gente tem de ter conteúdos criativos e acessíveis, como vídeos curtos que falem a linguagem do povo, que esclareçam a segurança da vacina, além de ter estratégias para atender todo mundo, como aumentar o horário das unidades de saúde, e ter mais campanhas de conscientização.”
O neurocirurgião Paulo Porto de Melo nega fazer parte do movimento antivacina, assim como o infectologista Francisco Cardoso. “Não sou nem nunca fui antivacina, inclusive meus filhos têm todas as vacinas do PNI e algumas que não são do programa, mas que considero úteis e seguras”, garante Melo, mesma justificativa apresentada por Cardoso. “Jamais adotei posicionamento contrário à vacinação. Meus filhos possuem o calendário vacinal integralmente atualizado pelo PNI, bem como receberam, por minha livre convicção médica e pessoal, imunizações adicionais não integrantes do programa, por considerá-las seguras e eficazes. Meus posicionamentos sempre são a favor da vacinação, inclusive combatendo mitos ‘antivacina’ clássicos”, completa Cardoso. Os dois médicos afirmam que nomearam advogados para entrar com ações judiciais contra quem os acusa. O imunologista Roberto Zeballos não atendeu a reportagem. •
Publicado na edição n° 1391 de CartaCapital, em 10 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Doutores contra o Zé Gotinha’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.



