Cultura
Um álbum muito pessoal
Lenine, nos anos Bolsonaro, e sob a pandemia, quase largou a carreira. Agora, aos 66 anos, lança um novo disco
O cantor e compositor pernambucano Lenine tem paixão pela botânica. Em seu sítio, na serra fluminense, o artista mantém uma coleção de orquídeas e, durante a pandemia, cuidar de plantas acabou se tornando uma forma de ele lidar com o isolamento social, o cancelamento de shows e o clima de intolerância gerado pelo governo Bolsonaro.
“Para mim, foi uma desestruturação total da realidade”, diz Lenine, sobre aquele tempo, em entrevista a CartaCapital. “Essa situação toda me jogou num lugar depressivo.” Naquele momento, ele pensou seriamente em largar a música e se dedicar integralmente ao hobby que tanto ama: a botânica.
Lenine conta que quem conseguiu demovê-lo da ideia de parar a carreira foi um de seus filhos, Bruno Giorgi, que produz seus discos desde Chão (2011).
A partir de 2022, conforme o confinamento saía do horizonte e seu estado de espírito melhorava, Lenine foi conseguindo voltar a fazer shows. Inicialmente, optou pelas apresentações com voz e violão, sem banda de apoio, evitando, assim, ter de lidar com muitas pessoas no palco – algo que seria difícil naquele momento de recuperação emocional.
O resultado desse seu retorno à música está em Eita, álbum de inéditas que chegou às plataformas nesta sexta-feira 28. Fazia dez anos que Lenine não lançava um álbum de estúdio. O último tinha sido Carbono (2015). Nesse meio-tempo, ele gravou um disco ao vivo, Em Trânsito (2018).
O novo disco reflete de forma direta as experiências vividas pelo artista. Mas, mais do que retomar as dores sentidas, o que ele faz é valorizar em suas letras o afeto, a esperança e a família. Foram, afinal de contas, esses três elementos que o fizeram continuar na música.
“Para mim, foi uma desestruturação total da realidade. Essa situação toda me jogou num lugar depressivo”, relata o compositor
A canção que abre o disco, Confia em Mim, dele com Dudu Falcão, aborda a necessidade de acreditarmos uns nos outros. Na canção seguinte, a faixa-título, composição que assina sozinho, ele prega a amorosidade: Eita/ O fato é que o afeto é a receita/ Que pode transformar nossa conduta/ E me levar a ter mais esperança.
As duas composições dão o tom do disco: um mergulho nos sentimentos após o confinamento social da pandemia e a desilusão sentida diante de um país polarizado e intolerante.
Lenine considera o disco um trabalho em primeira pessoa. Não à toa, o cantor é autor ou coautor da maioria das letras das 11 faixas. Quatro canções fazem referência direta à família: Meu Xamego, Foto de Família (composição com outro filho, João Cavalcanti), Deita e Dorme (com Arnaldo Antunes) e Aos Domingos.
Foto de Família alude a um registro fotográfico de sua mãe com os netos. Na música, o cantor faz duo com Maria Bethânia. “Ela foi a pessoa ideal para interpretar a canção mais passional de todas”, diz, para explicar o convite feito à amiga de muitos anos.
A cantora baiana nunca tinha participado de um disco de Lenine. Já ele havia participado de um disco dela, Noite Luzidia ao Vivo (2001), cantando Nem o Sol, Nem a Lua, Nem Eu, parceria sua com Dudu Falcão.
Em Deita e Dorme, ele faz uma citação ao seu quinto neto, que nasceu prematuro e passou os três primeiros meses de vida no hospital. “Houve muito sofrimento e mobilização da família”, conta ele. Nos versos de Arnaldo Antunes, a canção oscila entre a dor e a alegria: Dá um treco/ bate a porta/ perde a rota (…) Bate asas/ dá um mole/ vai pra casa.
Embora seja um álbum íntimo, Eita não deixa de lado as questões sociais. Em O Rumo do Fogo, feita em parceria com Lula Queiroga, por exemplo, Lenine faz uma defesa dos povos originários. A canção foi gravada por ele e Maria Gadú.
O Nordeste, sempre muito presente em seus trabalhos, também aparece em Eita: Boi Xambá, com a participação do grupo Bongar, e Malassombro, criada em parceria com Siba, do Mestre Ambrósio, remetem diretamente à cultura nordestina. A mistura de ritmos nordestinos com o pop contemporâneo é uma marca de sua carreira desde Olho de Peixe (1993).
“A nordestinidade me estimula, e o Brasil agora tem um débito gigante com o Nordeste: foi a região que deu a vitória ao presidente Lula (na eleição de 2022)”, diz. “A partir daí, voltamos a pensar no coletivo.” A capa do novo disco traz uma linogravura da artista Luiza Morgado que traduz o universo afetivo do álbum, com crianças, retratos e referências ao Nordeste.
Com o novo disco – que sai acompanhado de um registro audiovisual, lançado no YouTube – Lenine mostra, aos 66 anos, que entendeu que a música é o seu lugar.
O mergulho intenso na intimidade é uma novidade em seu trabalho, e o resultado é bonito, ainda que não tenha o impacto de seus álbuns mais potentes, como O Dia em Que Faremos Contato (1997) e Na Pressão (1999), e nem mesmo do último, o Carbono. •
Publicado na edição n° 1390 de CartaCapital, em 03 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um álbum muito pessoal’
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