Cultura
Efeito parabólica
Por meio de um curador camaronês, o Manguebeat, movimento nascido no Recife, em 1992, vai parar na Bienal
A palavra estuário, que designa a área em que água salgada e água doce se juntam, aparece tanto no texto de apresentação da 36ª Bienal de São Paulo quanto no manifesto Caranguejos com Cérebro, elaborado por Fred Zero Quatro, líder da banda Mundo Livre, em 1992, marco do movimento Manguebeat.
No estuário florescem os manguezais, ecossistema identificável pelo entrelaçamento de troncos e raízes e conhecido por ser muito fértil e abrigar uma multiplicidade de seres – nem sempre vistos e reconhecidos. Veio daí a metáfora do Manguebeat. Por meio de uma “antena parabólica enfiada na lama”, Recife, cidade cercada pelo mangue e marcada pela multiplicidade de ritmos, vozes e ideias, se conectaria ao mundo.
E é essa parabólica imaginária que, passadas três décadas, conecta a Bienal, evento fundado em 1962 pela elite socioeconômica paulistana, ao movimento cultural nascido no Recife sob a égide da tecnologia e da diversidade.
O curador-geral da 36ª Bienal, o professor Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, era adolescente, em Camarões, quando descobriu a música dos grupos do Recife. Ficou à altura fascinado pela coexistência de culturas produzindo novos significados.
“Ao receber o convite para enviar uma proposta para a Bienal, Ndikung vai buscar inspiração naquele movimento do Recife”, conta Thiago de Paula Souza, cocurador da Bienal. “Foi um momento em que, no meio de tantos conflitos sociais, músicos encontraram inspiração na paisagem local para produzir um movimento que modificou o que pensamos sobre artes e cultura brasileira.”
Para dar mais concretude aos diálogos entre a Bienal aberta em 2025 e o manifesto de 1992, foi realizado, no domingo 23, o Festival do Mangue, que levou para o pavilhão, no Ibirapuera, Mundo Livre, Buhr e Maciel Salú. “São artistas que pensaram a conexão entre homem e natureza, entre os homens, e entre o ser humano, natureza e tecnologia”, diz Souza, citando os temas que norteiam esta edição da Bienal.
Os três se apresentaram para uma pequena multidão, de diversas tribos e idades, um reflexo do próprio movimento, que pregava um mundo plural, em constante transformação. “Da monocultura basta a cana-de-açúcar”, diz Fred Zero Quatro, lembrando um dos lemas do movimento que agora é também chamado de “Manguebit”. Vocalista e letrista do Mundo Livre, ele foi um dos mentores do movimento, ao lado de Chico Science (1966–1997), líder da banda Chico Science & Nação Zumbi.
Juntos, Zero Quatro e Science delinearam o conceito que pregava um pensamento plural e coletivo; a junção de ritmos e gêneros; e a diversidade de ideias. Enquanto a monocultura empobrece o solo, o mangue fertiliza.
“Trouxemos o multiculturalismo em um momento de crise social e apatia. E trouxemos a autoestima para Recife, quando só o que vinha de fora era valorizado”, disse Zero Quatro a CartaCapital, após a apresentação. “Esse movimento inverteu-se e foi Recife que começou a influenciar o mundo, se consolidando como um dos polos exportadores de tendências musicais.”
No manifesto, Zero Quatro escreveu que, a partir da reavaliação do conceito de pop, mais de cem bandas surgiram na região do mangue a partir de 1991, “deslobotomizando e recarregando as baterias da cidade” com a mistura de ritmos locais a eletrônico, rock, punk, ska e hip-hop.
A primeira banda a se consolidar foi Chico Science & Nação Zumbi, com o álbum Da Lama ao Caos (1994). A letra de Monólogo ao Pé do Ouvido diz: Modernizar o passado/ É uma evolução musical/ Cadê as notas que estavam aqui/ Eu não preciso delas.
Já o álbum de estreia do Mundo Livre S/A, Samba Esquema Noise (1994), começava com o questionamento do próprio movimento: Sou eu transistor/ Recife é um circuito/ O país é um chip/ Se a terra é um rádio/ Qual é a música?
Dos três eixos expositivos da 36ª Bienal, o que trata das cadeias de transformação é o que mais se aproxima do manifesto Caranguejos com Cérebro. Ali, um conjunto de obras reflete sobre a maneira pela qual culturas e sociedades lidam com assimetrias existentes e estruturas de poder, buscando criar novos caminhos de coexistência e beleza.
O curador-geral Bonaventure Soh Bejeng Ndikung era adolescente, na África, quando descobriu os grupos pernambucanos
A instalação Como Criar Raízes Aéreas, de Rebeca Carapiá, revela uma planta de raízes aéreas, expostas ao tempo e às transformações. Embora não represente o mangue do Recife, mas uma vegetação da bacia do Rio Amazonas, a obra, na leitura do crítico de arte Mateus Nunes, “convida a compreender que não há contradição entre estar aficada no chão ancestral e alçar voo”.
Essa existência dupla, em nada contraditória, é, não por acaso, uma característica de Buhr, expoente do “Manguebit” que abriu o festival com uma performance arrebatadora. “Minhas grandes referências musicais são o Carnaval e as festas de São João. É a percussão do maracatu”, diz a artista que, a partir da percussão, foi do rock ao punk e à música eletrônica.
Para Buhr, a imagem da parabólica na lama segue forte: “É a ideia de que podemos pegar informações de outros lugares e inventar um jeito próprio de realização, incluindo, destrinchando, colando referências, retalhos”.
Buhr deu-se conta do alcance da influência do Manguebeat ao ser procurada pelo curador camaronês. “Quando eu, Mundo Livre, Nação Zumbi e Maciel nos reunimos com o Ndikung, achei impressionante a ligação entre o nosso movimento e o conceito que ele tinha para a Bienal, de alinhamento de arte, natureza, ritmos, música”, explica.
Como diz Buhr, no mangue há muita transformação e também muita resistência: “Música, teatro, política, natureza, artes plásticas, tudo segue misturado nessa luta por humanização”. •
Publicado na edição n° 1390 de CartaCapital, em 03 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Efeito parabólica ‘
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