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Álcool na tomada

O híbrido da BYD movido a etanol e eletricidade é um modelo de inserção mais vantajosa do Brasil no setor

Álcool na tomada
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Percurso. O investimento na inovação e pesquisa em meados dos anos 1970 ainda rende frutos. O uso de álcool e baterias elétricas indica um caminho interessante – Imagem: BYD Brasil/COP30 e Acervo Stellantis/FIAT
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A reabertura do Salão Internacional do Automóvel em São Paulo, com a presença do presidente Lula, assinala bem mais que a ­retomada do setor, após nove anos de ausência do evento e depois da tentativa malsucedida de lançar a política e a economia do País no pântano. Simboliza a possibilidade concreta de inserção da indústria brasileira na arena de disputa de padrões tecnológicos polarizados entre a China e os Estados Unidos, em um contexto distinto daquele do surgimento do setor automobilístico no País no século passado.

A produção, pela BYD, do primeiro carro híbrido 100% brasileiro que roda com etanol e energia elétrica, com tecnologia criada por engenheiros do Brasil e da China, revela o atual processo, marcado pelo aumento expressivo dos investimentos chineses na manufatura brasileira. As inversões ocorrem no contexto do programa “Nova Indústria Brasil” e essa peculiaridade parece conferir ao processo um significado diferente em relação às ondas anteriores de entrada de capital externo. No estudo ­Investimentos ­Chineses no Brasil 2024, o economista Tulio Cariello, diretor de Conteúdo e Pesquisa do Conselho Empresarial Brasil-China, a NIB é mencionada seis vezes e o autor aponta o que seria um alinhamento de boa parte do investimento chinês à política industrial brasileira.

“Partes importantes dos investimentos chineses não por acaso coincidem com prioridades da Nova Política Industrial. Isso mostra que a NIB, apesar das suas limitações, foi bem desenhada”, afirma o economista Antônio Carlos Diegues, professor do Instituto de Economia da Unicamp e coordenador do Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia. A convergência ocorre porque setores e áreas considerados estratégicos nessa política industrial também são estratégicos para os chineses. Ou seja, está alinhada com o a vanguarda tecnológica, na qual se dão as disputas tecnológicas mundiais. Há uma coincidência de áreas. As mais representativas são novas energias, transição verde e veículos elétricos, acrescenta Diegues.

A transferência tecnológica é, porém, mais complexa. “Talvez a gente precisasse exigir um pouco mais de transferência de tecnologia. Mas é muito difícil fazer isso, negociar, disputar, leva tempo. Não é um tempo tão veloz como a gente gostaria que fosse e não é também o tempo do ciclo político eleitoral de quatro anos. O que complica ainda mais a situação”, sublinha o professor. O processo passa pela construção de uma parceria de cooperação científica e tecnológica e de aproximação, iniciada décadas atrás nos foros institucionais do Sul Global, na criação dos BRICS, na atuação do Itamaraty e de Lula. “E não quer dizer que os chineses queiram transferir tecnologia tão claramente, porque isso é central para eles também. Então é uma disputa. E há tensões.”

Garantir transferência tecnológica relevante é, porém, tarefa complexa

Em contrapartida, prossegue, a NIB tem um desenho mais sofisticado e um diagnóstico mais complexo e atualizado, em termos de instrumentos e de leitura de política industrial, na comparação com as políticas industriais anteriores nos governos Lula e Dilma. Há diversos instrumentos de incentivo, de contrapartida, que passam pelo desenvolvimento de atividades de pesquisa e desenvolvimento locais. Além de métricas para o adensamento produtivo e do incentivo para o investimento, com depreciação acelerada e impostos reduzidos quando há a formação de uma rede de fornecedores locais e se for constituída uma cadeia produtiva um pouco mais complexa. Há casamento desses incentivos com métricas para a realização de atividades de pesquisa e desenvolvimento no Brasil. Esse é um primeiro passo para avançar rumo à construção de capacitações tecnológicas locais, aprendizado inovador e na direção de construir adiante condições para a transferência de tecnologia, ressalta.

“Colocar na prática, claro, é muito difícil, quando se vai fazer política há limitações e restrições de ação do Executivo, um Congresso com outras interpretações do que seria uma estratégia de ­desenvolvimento, lobbies, a força das multinacionais chinesas”, destaca Diegues. Mas tudo isso é razoavelmente bem contemplado na NIB para entender a centralidade da inovação vinculada à transição verde e digital, e isso está no radar e nos instrumentos e nas políticas.

Corre-se sempre o risco de que a internacionalização do capital externo não traga o adensamento da industrialização local, alerta o economista. “É exatamente o que acontece com a BYD. Tem de ficar o tempo todo atento, oferecendo incentivo, diversas políticas que visem aumentar a densidade produtiva e tentem impor algumas condições à montadora e a outros capitais chineses que, se fossem deixados ao sabor das livres forças do mercado, não teriam tanto interesse em adensar a produção doméstica no Brasil e em nenhum outro lugar do mundo.” Cabe acrescentar que, por exigência do governo e pressão da Anfavea, associação das fabricantes estadunidenses e europeias, a BYD desistiu da intenção de apenas enviar veículos prontos ou desmontados ao País e acelerou a instalação da unidade em Camaçari, para escapar da antecipação da alíquota máxima de importação de 35%, de 2027 para 2026.

O novo cenário tributário pressionou tanto a BYD quanto a GWM a acelerarem seus planos de produção e nacionalização de componentes no Brasil para manterem preços competitivos. “Os EUA e demais países ocidentais tentam barrar o avanço chinês em terceiros mercados e o acesso a algumas tecnologias. E me parece claro que, pela primeira vez na história desde a primeira revolução industrial, há uma disputa pela liderança nos padrões tecnológicos em gestação para além das chamadas democracias liberais”, sublinha ­Diegues. Ou seja, a tríade EUA, Europa e Japão versus a China. Isso não aconteceu nem com a União Soviética, que não tinha o objetivo de levar a internacionalização do seu padrão para outros países além das repúblicas soviéticas. E essa disputa ocorre primordialmente no Brasil e na América Latina”, conclui o economista. •

Publicado na edição n° 1390 de CartaCapital, em 03 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Álcool na tomada’

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