Cristina Serra

Paraense, jornalista e escritora. Autora, entre outros, de 'Tragédia em Mariana: a História do Maior Desastre Ambiental do Brasil' (Ed. Record)

Opinião

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A COP e o clima

Copo meio cheio ou meio vazio?

A COP e o clima
A COP e o clima
Lobistas de combustíveis fósseis representam um a cada 25 participantes da COP30, denunciam ONGs. Foto: Mauro PIMENTEL / AFP
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A Vila da Barca é uma comunidade centenária, no bairro do Telégrafo, em Belém do Pará, com cerca de 5 mil moradores. Conhecida pelas palafitas fincadas sobre as águas da Baía do Guajará, a Vila mantém as características de povoação ribeirinha, onde vivem muitos pescadores e suas famílias, em plena área urbana da metrópole de 1,3 milhão de habitantes.

Quando eu tinha 18 anos e ainda era estudante de Jornalismo, pisei na Vila da Barca pela primeira vez. O professor de Fotografia orientara os alunos a andar pela cidade com o olhar atento para os seus habitantes. Escolhi conhecer a Vila. Lembro do choque ao me dar conta do contraste entre as carências da comunidade e o conforto do bairro de classe média onde eu vivia.

Isso foi no começo dos anos 1980. O Brasil começava a trilhar seu caminho de volta à democracia e a comunidade despertava para a organização popular ao fundar a Associação de Moradores da Vila da Barca. Na época, as famílias dispunham de uma única torneira para o abastecimento de água potável, onde se formava uma extensa fila com baldes, latas e panelas. A penúria forjou gerações na luta por vida digna e fortaleceu a coesão social. Foi o que se viu nos meses que antecederam a COP30, em meio à profusão de obras em Belém, nos preparativos para a conferência.

Uma das obras mais vistosas do governo estadual foi o Parque Linear da Doca, que custou mais de 330 milhões de reais e despertou a atenção nacional porque nele foram instaladas “árvores” artificiais, feitas de vergalhão. A cerca de 2 quilômetros da Vila da Barca, a Doca é o nome mais conhecido da Avenida Visconde de Souza Franco, o metro quadrado mais caro de Belém, com seus espigões, shopping, restaurantes e serviços de lazer. Apesar do CEP de luxo, a avenida é cortada por um canal malcheiroso, que comprimiu o braço de rio de águas límpidas do passado.

Era preciso encontrar um local para despejar a lama fétida retirada do canal da Doca. Adivinhe o local escolhido? Sim, um terreno da Vila da Barca virou o “bota-fora” da obra. A comunidade armou-se de indignação e denunciou nas redes sociais o caso típico de racismo ambiental. A mobilização durou meses e os moradores conseguiram, no fim das contas, a instalação da tão sonhada rede de abastecimento de água. Outra conquista foi a rede coletora de esgoto por meio de uma tubulação que passa embaixo das palafitas e passarelas de madeira, ainda em fase de instalação. Permanece, porém, a luta por moradia segura. Dezenas de casas mal se equilibram sobre as estacas, sujeitas ao vaivém das marés.

O caso da Vila da Barca expressa de maneira exemplar o abismo que separa ricos e pobres no Brasil e serve também como um espelho das desigualdades entre os países reunidos na COP30. Entre dezenas de discursos proferidos naquelas duas semanas, nenhum foi tão claro em seu caráter colonial e xenófobo quanto a declaração do primeiro-ministro alemão, Friedrich­ Merz, que, já em Berlim, declarou-se feliz por ter “deixado aquele lugar”, no caso, Belém. É esse tipo de gente que diz querer salvar a Amazônia e o planeta?

A COP30 não conseguiu avançar nenhum passo no financiamento, para que os países mais pobres consigam fazer a transição energética necessária para enfrentar a emergência climática. A verdade é que os países mais ricos e poluidores veem­ o financiamento, quando muito, como filantropia e caridade, não como estratégia de enfrentamento à catástrofe global.

Depois de três COPs seguidas em países autoritários e de mãos dadas com o capital fóssil (Egito, Emirados Árabes Unidos e Azerbaijão), foi um avanço trazer a conferência para o Brasil. Aqui, os povos indígenas e a Marcha Global pelo Clima fizeram a voz da sociedade civil ecoar nos circuitos fechados da conferência, por onde lobistas do petróleo, da mineração e do agronegócio circularam com desenvoltura. Mas a próxima COP voltará para um país autoritário, a Turquia.

Por último, a questão mais candente da conferência. O Brasil teve a iniciativa de propor a superação “da dependência dos combustíveis fósseis” (responsáveis por 70% das emissões de gases de efeito estufa), sendo necessário, para isso, criar um “mapa do caminho”, dizendo quando e como isso deve ser feito. Os petroestados espernearam e o tema não entrou nos documentos oficiais.

Mas o fato é que os combustíveis fósseis entraram para valer no debate e o Brasil – com suas “dificuldades e contradições”, como disse o presidente Lula – comprometeu-se a persistir no tema, numa agenda paralela à oficial. Com apoio de cerca de 80 países, a Colômbia e a Holanda puxaram uma conferência internacional sobre a eliminação gradual dos combustíveis fósseis. O encontro está previsto para abril de 2026, na cidade colombiana de Santa Marta. Copo meio cheio ou meio vazio? Deixo ao gosto do leitor que chegou até aqui. •

Publicado na edição n° 1390 de CartaCapital, em 03 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A COP e o clima’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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