Opinião
O Master e a maestria financeira
Não há como escapar, no capitalismo as decisões são governadas pela especulação permanente sobre o futuro
A liquidação judicial imposta pelo Banco Central ao Banco Master suscitou manifestações de economistas e jornalistas econômicos. As manifestações buscaram identificar as razões do infausto episódio com base nos critérios que assolam o “espírito microeconômico”.
Vou cometer a ousadia de considerar a derrocada do Master a partir dos movimentos histórico-sistêmicos, gravados inexoravelmente nas formas constitutivas dos mercados financeiros, corpo e alma do capitalismo desde os primórdios de sua existência.
No livro Manias, Panics, and Crashes, o economista Charles Kindleberger faz uma autópsia dos processos maníacos que, inevitavelmente, culminam no colapso de preços dos ativos financeiros e nas crises de crédito. Assim foi em Amsterdã, no episódio da Tulipomania, um antepassado modesto dos grandes crashes dos séculos XX e XXI. Entre 1634 e 1637, os investidores holandeses, muitos de classe média, especularam furiosamente com a possibilidade de negociar, a preços cada vez mais elevados, os bulbos de tulipa, que, ademais, tinham a vantagem de exigir muito pouco ou nada para a sua reprodução.
Na base das expectativas exacerbadas quanto à evolução do preço das tulipas estavam o Banco de Amsterdã e sua capacidade de estender o crédito e de suportar o avanço da especulação.
Desde a Tulipomania de 1634, passando pelas crises cada vez mais frequentes do século XVIII, como a Bolha dos Mares do Sul, em 1720, e chegando aos desastres financeiros dos séculos XX e XXI, o que mais impressiona o observador é a semelhança entre episódios tão diferentes.
A evolução do sistema de crédito chegou ao ápice depois da Revolução Industrial. A expansão dos mercados, desde o século XI até o fim do século XVIII, foi acompanhada de importantes transformações nos sistemas monetários e na operação do sistema de crédito. Com o renascimento do comércio à longa distância e a recentralização do poder político, as relações de débito e crédito ressurgiram nas feiras medievais. Eram administradas pelos grandes comerciantes encarregados de promover a liquidação, entre uma feira e outra, do saldo das operações mercantis e estabelecer as taxas de câmbio entre as diversas moedas que denominavam as transações.
Os bancos, na Era Mercantilista, concentraram-se no financiamento da dívida pública garantida por impostos e pelo poder dos soberanos. A passagem do mercantilismo para o liberal-capitalismo industrial suscitou a metamorfose do sistema de crédito. Depois da Revolução Industrial, com a aceleração dos negócios, os bancos ingleses ampliaram as operações de desconto mercantil, fortalecendo sua função de sistema de crédito internacional. O processo de reprodução capitalista – em suas indissociáveis dimensões “materiais” e financeiras – impôs a consolidação do sistema bancário, aí incluído o Banco Central.
O mundo das finanças viveu uma relativa calmaria nas três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Há quem sustente que a escassez de episódios críticos deve ser atribuída, em boa medida, à chamada “repressão financeira”. Esta incluía a prevalência do crédito bancário sobre a emissão de títulos negociáveis (securities), a separação entre os bancos comerciais e os demais intermediários financeiros, controles quantitativos do crédito, tetos para as taxas de juro e restrições ao livre movimento de capitais.
As inovações financeiras recentes reforçaram as técnicas de “alavancagem” e as tentativas de mitigar o risco por meio de operações contratuais nos mercados futuros. O capital financeiro, para o bem e para o mal, é fonte e instrumento dos processos denominados pela vulgata econômica como “especulativos”, empenhados na valorização dos ativos “reais” e financeiros. No capitalismo, as decisões são governadas pela especulação permanente sobre o futuro, o que envolve a contínua reavaliação do presente.
Aqui cabe uma observação: a separação entre “ativos reais” e “ativos financeiros” é enganosa. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é a mesma coisa. A precipitação do dinheiro de crédito no mercado tem o propósito de gerar mais dinheiro. Se o dinheiro não circula, os “ativos reais” e financeiros avaliados “dinheiristicamente” nos balanços de bancos, empresas, famílias, padecem o risco de perder valor. Valor sempre avaliado em termos monetários-financeiros.
Insisto: nos sistemas monetário-financeiros, o dinheiro circula como unidade de conta, meio de pagamento – e, mais importante, é forma inescapável de mensuração do valor das empresas “produtivas” e financeiras. A dimensão Dinheiro-Riqueza submete as empresas e instituições financeiras aos critérios incontornáveis de mensuração e escrituração nos balanços. •
Publicado na edição n° 1390 de CartaCapital, em 03 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O Master e a maestria financeira’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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