

Opinião
O fantasma da crise hídrica volta a rondar
O governador Tarcísio segue a mesma política fracassada de sucessivos governos paulistas, que se recusam a implementar o que se faz em outras regiões do mundo onde também há escassez de água
São Paulo assiste de braços cruzados à ameaça de uma crise hídrica silenciosa, mas que se torna mais real a cada dia. Chegamos ao fim de setembro com o Sistema Cantareira operando com 23% de seu volume útil. Em 2024, o volume era de 45% no mesmo período.
A queda é drástica, e o que está por vir é ainda mais preocupante. Mesmo que o verão traga um volume de chuvas dentro da média histórica, o que é pouco provável dado o histórico pluviométrico, os reservatórios não terão força para se recuperar plenamente. E, sem água, não há cidade que funcione adequadamente.
Caso a escassez dos reservatórios avance, a tendência é captarmos água do volume morto, como na última crise hídrica ocorrida entre 2014 e 2016. Essa última camada de água carrega sedimentos inertes, que podem fazer mal à nossa saúde. Como a captação nessa condição se faz por bombeamento, a movimentação mistura esses elementos à água e permite que eles cheguem às nossas torneiras.
Mesmo diante desse cenário alarmante, o governador Tarcísio de Freitas tem feito muito pouco (ou quase nada) para resolver de fato o problema. Ele alimenta na população a ilusão de que obras de engenharia que buscam água cada vez mais longe irão solucionar a escassez hídrica da metrópole. Não vão. A verdade é que a falta de água se manifesta com mais força a cada década.
Atualmente, existem obras em andamento, como a ligação do rio Itapanhaú ao Biritiba-Mirim, com grande impacto ambiental sobre um dos mananciais mais preservados do litoral e elevado custo de energia elétrica para a transposição entre bacias hidrográficas. Os moradores já se posicionaram contrários a essa obra, que se soma às várias outras realizadas há uma década, e que apenas mitigaram o problema.
O governador Tarcísio segue a mesma política fracassada de sucessivos governos paulistas, que se recusam a implementar o que se faz em outras regiões do mundo onde também há escassez de água. Por lá, o que se vê é priorização da gestão dos recursos hídricos ao invés de grandes obras de engenharia.
Por que não tentar algo assim na represa Billings, por exemplo, cujo corpo principal dispõe de volume de água equivalente ao sistema Cantareira e não pode ser aproveitado para abastecimento devido à poluição de suas águas? Outra frente poderia se dar na redução dos índices escandalosos de perda de água tratada pela Sabesp, que chega a mais de um terço do que produz.
São problemas que podem ser resolvidos. Há exemplos por todo o globo, como a despoluição de rios na França, Alemanha e Inglaterra, ou ainda a drástica redução de perdas de água no Japão.
Com a Sabesp privatizada, e agora também responsável pelos reservatórios após a compra da Emae, o governo parece ter lavado as mãos. Prefere o silêncio a um plano robusto de enfrentamento. Tarcísio parece realmente acreditar na sua frase infeliz sobre bebidas adulteradas: “não me preocupo, só tomo Coca-Cola”, como se, ao ignorar o risco, ele desaparecesse.
A grande dúvida agora é: a Sabesp privatizada será capaz de agir com firmeza diante de uma crise que ameaça os paulistas? Ou, presa à lógica do lucro, preferirá preservar dividendos a garantir água nas torneiras? Existe um conjunto de ações que podem resultar em uma solução mais efetiva ao risco de escassez hídrica, mas são projetos caros e com retorno zero para os acionistas.
Para aqueles que ainda acreditam que a iniciativa privada trabalha melhor que o poder público, esta será uma prova de fogo. É preciso recuperar os mananciais, ampliar o reuso da água na indústria e na agricultura e tratar 100% do esgoto produzido.
Ao invés de avançar nessas frentes, a Sabesp, por enquanto, opta por uma saída “custo zero”, com a redução da pressão da água durante as madrugadas. Uma medida que diminui as perdas na rede de distribuição, mas compromete o abastecimento daqueles que vivem nas periferias e em bairros mais altos, onde o fornecimento leva mais tempo para ser normalizado.
Entre a falta de chuvas e a escassez hídrica, estão pessoas com a capacidade de criar soluções que garantam maior segurança ao nosso sistema. Adotar ou não as ações necessárias é uma escolha política e exige coragem para enfrentar interesses econômicos poderosos.
Se acreditarmos que o mercado resolverá o problema que o Estado abandonou, vamos transformar a metrópole mais rica do país em um deserto urbano, onde quem tem dinheiro vai comprar água e quem não tem vai rezar para chover.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.



