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Em pé de guerra

Em uma ofensiva militar inédita na América Latina e no Caribe, os EUA abandonam as “sutilezas” da intervenção regional

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O porta-aviões Gerald R. Ford agora navega perto da costa venezuelana. Barcos de supostos traficantes continuam a ser bombardeados e Trump mantém a ameaça de atacar a Venezuela. Maduro, isolado, pede diálogo, enquanto prepara o exército do país para o pior – Imagem: USS Gerald R. Ford/Marinha dos EUA , Redes Sociais/Pentágono/EUA, Federico Parra/AFP e Mandel Ngan/AFP
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Os Estados Unidos estão em guerra na América Latina e no Caribe. Nos últimos meses, os norte-americanos mataram mais de 80 indivíduos a bordo de 23 embarcações no Atlântico Sul. Os ataques fazem parte de uma vasta operação que envolve o maior porta-aviões do mundo, além de dezenas de outros navios de combate e submarinos de propulsão nuclear, apoiados por um contingente de mais de 15 mil militares.

A maior e mais hostil ação de ­Washington contra a América Latina e o Caribe não é uma figura de linguagem. Ela foi classificada formalmente como uma guerra pelo Escritório de Aconselhamento Legal do Ministério da Justiça dos EUA. De acordo com o jornal The New York Times, um memorando de 40 páginas entregue à Casa Branca nas últimas semanas senta as bases formais para que a maior máquina militar do mundo possa operar em combate na região do Atlântico Sul, com as mesmas prerrogativas e imunidades outorgadas a seus comandantes militares e líderes políticos em conflitos anteriores, como no Iraque, na Síria ou no Afeganistão, quando o inimigo declarado era o terrorismo praticado por grupos extremistas islâmicos, não o narcotráfico, o grande espantalho do momento.

Com o respaldo desse memorando, o secretário de Defesa norte-americano, Pete Hegseth, anunciou em 13 de novembro a criação de uma força-tarefa batizada de Southern Spear (Lança do Sul), sob responsabilidade do Southcom, o Comando Militar Sul, que passou a incorporar o porta-aviões Gerald R. Ford em suas­ operações na América Latina e ­Caribe, juntamente com dezenas de navios anfíbios, usados para o desembarque de tropas de fuzileiros navais, e aeronaves de apoio. Um aparato típico de grandes operações ofensivas, não de mero patrulhamento de águas internacionais.

“O hemisfério ocidental é a vizinhança da América, e nós vamos protegê-la”, anunciou Hegseth, ecoando o discurso do presidente Donald Trump, e do secretário de Estado, Marco Rubio. O trio de ferro da política externa dos EUA considera a região da América Latina e o Caribe como sua “vizinhança” ou quintal, uma enorme área de influência em relação à qual, em 1823, o país adotou a Doutrina Monroe. Por meio dela, os norte-americanos tomaram para si a prerrogativa de reinar soberanos em toda a zona, sem que qualquer soberano europeu pudesse voltar a reivindicar autoridade sobre suas ex-colônias.

“O hemisfério ocidental é a vizinhança da América, e nós vamos protegê-la”, anunciou Pete Hegseth, secretário de Defesa

Em janeiro, The New York Post teve a sacada de batizar a nova política intervencionista de Trump para a região de “Doutrina Donroe”, de Donald, em vez de Monroe, de James Monroe, nome do presidente responsável pelo preceito original. Se o lema do atual governo é Make America Great Again (Faça a América Grande de Novo), a volta às práticas do século XIX parece fazer sentido para o sonho de grandeza reeditado à custa de uma vizinhança novamente percebida como coadjuvante, ameaçadora e subalterna.

No memorando do Ministério da Justiça, a guerra é contra os cartéis de narcotráfico, não contra os países da região. Os EUA dizem combater facções como o Tren de Aragua, La Nueva Familia Michoacana, Sinaloa e Salvatrucha, entre outras. Nos anos 1990 e 2000, os norte-americanos também mantinham uma guerra às drogas. Ela era dirigida contra grupos colombianos como as Farc e o Exército de Libertação Nacional. Naquele tempo, a estratégia consistia em dar dinheiro, armas, informações de inteligência e munição para presidentes da região como o colombiano Álvaro Uribe atacarem esses grupos. Agora, ao contrário, os EUA acusam o mandatário colombiano, Gustavo Petro, de apoiar esses cartéis, e o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, de ser um dos “narcoterroristas”. Não só. Em declaração recente, Trump insinuou a possibilidade de invadir o México para combater diretamente os traficantes. Com a cooperação substituída por ameaças de deposição, o alvo passou a ser mais político e abrangente, levantando o temor de que os EUA queiram aplicar na América Latina as mesmas estratégias de mudança de regime que deixaram países como Líbia, Síria e Afeganistão imersos no caos.

Trump voltou a cogitar uma invasão do México para combater os traficantes. A pressão sobre o vizinho e parceiro no Nafta continua – Imagem: Francisco Robles/AFP

Se o memorando dá imunidades legais aos envolvidos nessas ações, outros documentos, entre eles o decreto presidencial de 20 de janeiro, tornam mais nítidos os alvos, ao enumerar e nomear cada um dos cartéis e facções convertidos em inimigos nessa guerra. A ofensiva legal vem acompanhada de uma artilharia política pesada, com Trump lançando ameaças diretas a Maduro. Com isso, paira sobre toda a região um temor difuso de intervenção militar que ninguém é capaz de dizer até onde pode ir sem correr o risco de parecer alarmista ou paranoico, apesar de todos os sinais bélicos colocados sobre a mesa, de maneira explícita, por seus maiores protagonistas. “Os EUA, historicamente, consideram a região como sua área de influência e isso foi reforçado com o retorno de Trump à Casa Branca”, afirma a cientista política Renata Peixoto, professora do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Para ela, “o comportamento do presidente norte-americano é imprevisível” e, portanto, “não seria paranoia temer e se preocupar com uma possível ação militar” na região. Entretanto, pondera, é preciso considerar que “tal ação teria várias consequências desastrosas para os EUA e para os países vizinhos”, pois “incursões militares apresentam custos elevados” para todos os envolvidos.

Peixoto considera que “o discurso da guerra contra o terrorismo e contra as drogas pode funcionar, angariando mais apoio interno para Trump agir de fato”. Mas os elementos determinantes seriam, além do aval do eleitor norte-americano, a reação dos líderes sul-americanos e as respostas da própria Venezuela “diante do risco de uma invasão”.

A reação coordenada dos líderes do subcontinente parece ser ainda uma possibilidade remota. A desunião na região é tão grande que, pela primeira vez em 31 anos de história, a Cúpula das Américas não vai ocorrer. O encontro dos presidentes dos países do continente estava marcado para acontecer entre 1º e 5 de dezembro, em Punta Cana, na República Dominicana, mas foi cancelado porque a região enfrenta “divisões profundas”, segundo comunicado expedido pelos anfitriões. Essa era uma das chances de contornar diplomaticamente as tensões políticas, trocando o léxico militar pela diplomacia, numa configuração mais favorável às nações latino-americanas do que aos EUA. Sem a coesão daqueles que se sentem ameaçados, Trump avança, enquanto explora essas divisões. Além de ameaçar abertamente a Venezuela com uma ação militar e de associar Petro com o tráfico internacional de drogas, ele também castigou o Brasil com as maiores taxas de importação do mundo, sob o argumento de defender o ex-presidente Jair Bolsonaro, condenado a mais de 27 anos de prisão por envolvimento num golpe de Estado frustrado, de uma suposta perseguição política.

O combate ao “narcoterrorismo” é a desculpa para o intervencionismo da Casa Branca

Ao mesmo tempo que hostiliza líderes de esquerda, o republicano aglutina em torno de si os presidentes de direita e extrema-direita da região. Trump liberou um empréstimo de 20 bilhões de dólares à Argentina de Javier Milei às vésperas das eleições locais, que acabaram vencidas pelo La Libertad Avanza. Além disso, recebeu em Washington o presidente salvadorenho Nayib Bukele, símbolo regional da política do “prende e arrebenta”, a quem agradeceu por ter aceitado mandar ao cárcere um grupo de venezuelanos deportados dos EUA. “O governo Trump usa um cardápio de instrumentos de relações internacionais que outros não usariam, com o objetivo principal de intimidar qualquer governo que não se alinhe aos interesses de Washington”, avalia Carlos Frederico Coelho, professor de Relações Internacionais na PUC do Rio de Janeiro e da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Presidentes como Maduro e ­Petro, prossegue, são usados para catalisar o projeto norte-americano, num contexto em que “qualquer coisa é usada como justificativa para uma ação unilateral”.

Enquanto a Casa Branca ataca o colombiano Petro, Lula reafirma a soberania do subcontinente – Imagem: Ricardo Stuckert/PR e Raul Arboleda/AFP

Assim como Peixoto, Coelho não considera que a preo­cupação com uma ação militar norte-americana na região seja, a esta altura, paranoia. Ele alerta, entretanto, para a diferença entre “ações militares” e “incursões das forças terrestres em território venezuelano”. Para Coelho, “as ações militares já acontecem de fato, como mostram as interceptações de barcos”. Uma “incursão terrestre” tem, por sua vez, “probabilidade baixa” de ocorrer, e o mais provável é a utilização de “instrumentos híbridos para provocar a desestabilização” de Maduro. Com isso, a região “vai se convertendo numa zona de pressão permanente, como mostram as tarifas injustificadas impostas ao Brasil e o uso de força militar contra o narcotráfico”. O acadêmico acrescenta: “A justificativa de que a Venezuela representa uma ameaça aos EUA não para de pé, mas é o que a Casa Branca usa para explicar uma presença militar maior e criar um ambiente de desestabilização, reposicionando sua influência na região”.

O reposicionamento teve início ainda em janeiro, quando Trump rebatizou unilateralmente o Golfo do México de Golfo da América, ao mesmo tempo que ameaçava tomar para si o Canal do Panamá e anexar o Canadá como apenas mais um estado norte-americano. A forma de lançar essas ameaças é tão despudoradamente hostil e tão rude que muita gente se pergunta se tudo não passa de burla. Pouco a pouco, a mobilização da máquina militar afasta, porém, as dúvidas e coloca no lugar teorias acerca de quando e onde essa ação hostil teria início, e quais as consequências para uma zona tradicionalmente de paz. •

Publicado na edição n° 1389 de CartaCapital, em 26 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Em pé de guerra’

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