CartaCapital
O escultor de São Paulo
Edifício reformado no centro da capital paulista homenageia Tebas, o arquiteto negro alforriado
Negro escravo, profissão: alvenaria”, diz o samba do saudoso Geraldo Filme, que tirou Tebas do rodapé da história e o devolveu à memória popular. Mais de dois séculos depois, o apelido do pedreiro e arquiteto, de nome Joaquim Pinto de Oliveira, volta a aparecer no centro de São Paulo, agora na fachada de um prédio reformado no Largo da Misericórdia, no coração da parte antiga da cidade. A poucos metros da Sé, que ele construiu “em troca de sua carta de alforria”, como canta o samba, o novo Edifício Tebas promete juntar habitação, arte e gastronomia em nome da sustentabilidade e da revitalização do Triângulo Histórico. Com 93% da estrutura original reaproveitada, uso misto e uma unidade de aluguel social, o projeto abre espaço para uma discussão mais ampla: que tipo de cidade se desenha quando a revitalização do centro e a memória negra passam a caminhar juntas? Para Marcelo Falcão, sócio da Somauma, empresa responsável pelo projeto, a escolha do nome é ao mesmo tempo simbólica e conceitual. “Para construir o futuro é preciso olhar para o passado. Reabilitar esse edifício é reconectar-se com a São Paulo antiga e reconhecer as mãos que ajudaram a erguer a cidade.”
O desenho do prédio aposta na convivência entre tempos. Os primeiros andares são abertos para a rua e os demais têm um espaço cultural dedicado à memória da região, um restaurante voltado à ancestralidade brasileira e habitações compactas, todas encaixadas na estrutura preservada do antigo edifício comercial.
A proposta de requalificação do Triângulo Histórico desperta, entretanto, leituras distintas entre urbanistas. Nabil Bonduki, arquiteto e vereador, reconhece a importância ambiental do retrofit, que reduz emissões e evita a demolição de estruturas existentes, mas vê limites nos incentivos públicos concedidos pela prefeitura. Para ele, recuperar edifícios é positivo, mas deveria vir acompanhado de um planejamento mais claro para a região. “Os incentivos precisam estar articulados a planos de uso”, afirma. “Hoje, a prefeitura concede benefícios sem garantir diversidade social nem atender a população de baixa renda.”
No caso do Tebas, que conta com incentivos do Requalifica Centro, Falcão não vê problemas em recorrer a esse tipo de instrumento. “Esses programas existem para estimular a reocupação de áreas ociosas, gerar emprego, atrair investimentos e recuperar patrimônio.” O retorno público, avalia, não se dá apenas em unidades de interesse social, mas em “movimentação econômica, novos postos de trabalho e reativação de edifícios históricos vazios ou subutilizados”.
A localização do Tebas também suscita debate. Bonduki considera que o Triângulo Histórico poderia priorizar atividades culturais e administrativas, por funcionar naturalmente como uma área de grande vitalidade urbana. “É uma região que pode operar 24 horas. Moradias ao lado de casas de shows tendem a gerar conflitos de uso”. Falcão discorda da ideia de que o uso residencial seja incompatível com a dinâmica do centro velho. Diferentes atividades no mesmo edifício e na mesma rua, afirma, mantêm o bairro vivo, inclusive à noite. Segundo o arquiteto, o projeto avança em duas frentes. Na comercial, o empreendimento está em pré-lançamento, com cerca de 40% das 43 unidades vendidas. Na obra, a equipe realiza inspeções e reparos na fachada, preparando o edifício para o retrofit interno. A previsão é que as moradias e os espaços de cultura e gastronomia sejam entregues no primeiro semestre de 2027.
As marcas do mestre do século XVIII espalham-se pela região
Para entender o peso simbólico do nome do edifício, é preciso voltar ao próprio Tebas. Como lembra o escritor Abílio Ferreira, autor de A Trajetória de Joaquim Pinto de Oliveira, o Tebas, o mestre pedreiro negro esculpiu em pedra de cantaria a São Paulo colonial. “Ele ornamentou igrejas, reformou a antiga Catedral da Sé e esculpiu o Chafariz da Misericórdia, justamente no Largo onde o edifício atual se ergue.” A redescoberta pública de Tebas não se deve apenas às suas obras, mas a uma conjuntura recente de interesse pela memória negra. O samba de Geraldo Filme, lançado nos anos 1970, recolocou Tebas no imaginário popular, mas o reconhecimento formal como arquiteto só viria em 2018, após pressão de pesquisadores e coletivos culturais.
O escritor lembra que “tebas”, no século XVIII, significava “bamba, porreta”. Era como o povo se referia ao homem que, escravizado, construiu marcos da cidade e conquistou a própria alforria com o ofício. O caráter popular e resistente é uma das razões para sua figura atrair tanto interesse contemporâneo. Para Ferreira, o batismo do prédio pode ser um avanço, “desde que haja contrapartida simbólica e informativa à sociedade”. Caso contrário, diz ele, corre-se o risco de transformar uma referência histórica em mera marca esvaziada.
Não existe um caminho único para o centro, mas um princípio inadiável, garantir a permanência de quem vive lá, defende a urbanista Paula Santoro, coordenadora do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. O território, diz ela, “é negro, imigrante, diverso em renda, crenças e modos de vida”. Mantê-lo assim exige políticas que evitem remoções e promovam requalificações graduais. O inverso, prossegue, ou seja, a substituição rápida de usos e populações, tende a apagar memórias e redes sociais difíceis de reconstruir. Os incentivos do Requalifica Centro, lamenta, pesam mais na balança do mercado do que no interesse público. “Os empreendimentos acabam oferecendo unidades sociais muito residuais, enquanto a maior parte da pontuação favorece fachada ativa, uso misto e estratégias de valorização.” O resultado é que poucos projetos incorporam moradores de baixa renda, justamente aqueles que habitam e dão vida ao centro.
No fundo, essa é a pergunta que suscita o debate a respeito do edifício que hoje leva o nome de Tebas: se a cidade da qual ele foi um dos artífices pode finalmente ser um lugar onde a memória não serve apenas como ornamento, mas como pacto de permanência e pertencimento. Ou, como versa Geraldo Filme, sobre o mestre pedreiro que “construiu a velha Sé” sem jamais ter sido celebrado: “Exalto no cantar de minha gente, a sua lenda, seu passado, seu presente”. •
Publicado na edição n° 1389 de CartaCapital, em 26 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O escultor de São Paulo’
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