Drauzio Varella

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Médico cancerologista, foi um dos pioneiros no tratamento da AIDS no Brasil. Entre outras obras, é autor de "Estação Carandiru", livro vencedor do Prêmio Jabuti 2000 na categoria não-ficção, adaptado para o cinema em 2003.

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Mentiras lucrativas

Por que Instagram e Facebook, a despeito de toda a tecnologia, não reconhecem e eliminam golpes? A resposta está nos bilhões de dólares gerados por eles

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Meta, dona do Facebook, Instagram e WhatsApp. Foto: Fabrice COFFRINI / AFP
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A Meta, dona do Instagram, ­Facebook e WhatsApp, ganha uma fortuna com o dilúvio de anúncios fraudulentos que infestam a plataforma. Essa é a manchete do ­Reuters Special Report para um relato escrito por Jeff Horowitz, repórter especializado em tecnologia, depois de uma investigação cuidadosa que mostra a cumplicidade da plataforma com as propagandas falsas exibidas por ela.

Escreve o jornalista: “No fim do ano passado, documentos internos projetaram que 10% do faturamento anual se deve à divulgação de propagandas, de itens proibidos e de golpes”. Esses 10% correspondem a estratosféricos 16 bilhões de dólares.

Os documentos revisados pela ­Reuters mostraram que a Meta deixou de identificar e de apagar uma avalanche de anúncios fraudulentos que expõem bilhões de usuários a esquemas criminosos de investimentos financeiros, cassinos online ilegais e venda de remédios falsos.

Em relação aos crimes contra a saúde pública brasileira cometidos em parceria com a Meta, quadrilhas de estelionatários se apropriaram de minha imagem com tanta facilidade que chegaram a pôr à venda um curso online que ensinava a falsificar minha voz, por Inteligência Artificial, para vender tratamentos falsos. Uma matéria da jornalista Isabela Aleixo, publicada no UOL, mostrou que os vigaristas tinham mais de 600 alunos matriculados.

Como já expliquei nesta coluna, fiz uma denúncia ao Ministério Público de São Paulo e pedi os préstimos do escritório de advocacia Bottini e Tamasauskas, na tentativa de descobrir quem são os meliantes. É tarefa inglória. A Meta recusa-se a identificá-los e a legislação brasileira não está preparada para enquadrá-la em nosso código penal.

Enquanto isso, milhares de pessoas ingênuas caem em golpes que as fazem comprar comprimidos de conteúdo desconhecido que apregoam curar diabetes, dor nas costas, neuropatias periféricas ou hipertensão, além de uma ­infinidade­ de suplementos alimentares inúteis e do abecedário completo de vitaminas.

A matéria da Reuters explica: “Muitas dessas fraudes partem de anunciantes suficientemente suspeitos para serem detectados pelos sistemas internos de segurança da Meta. Mas a companhia só os proíbe quando seus sistemas automatizados estimam em pelo menos 95% o grau de certeza de que se trata de fraude”.

E mais grave: quando o usuário clica numa dessas propagandas-golpe, passa a receber, por causa do algoritmo personalizado, outras da mesma espécie. É um esquema armado para otimizar os lucros da empresa em sociedade com golpistas para tomar dinheiro de pessoas de boa-fé.

O repórter entrevistou Sandeep Abraham, que trabalhou na Meta como investigador de segurança e afirma: “Se os legisladores não toleram que os bancos lucrem com fraudes, não deveriam tolerá-las na área da tecnologia”.

Anos atrás, quando começaram a aparecer os vídeos fake usando minha imagem, tentei inúmeras vezes pedir que os tirassem do ar. Santa inocência. Imaginei que tratava com gente honesta e bem-intencionada, mas, nas raríssimas vezes em que obtive resposta, uma mensagem automática dizia que o vídeo obedecia às regras estabelecidas pela plataforma. Nunca derrubaram uma propaganda falsa sequer.

Na investigação da Reuters, Jeff ­Horowitz afirma que um documento de 2003 indica que a Meta estava ignorando a vasta maioria das queixas contra os golpes. “Os funcionários da área de segurança da empresa estimavam que, naquele ano, os usuários do Instagram e do Facebook tinham documentado cerca de 100 mil propagandas falsas e tentativas de golpe, por semana. A Meta ignorou ou rejeitou incorretamente 96% deles.”

Você poderá pensar: com tantos vídeos que chegam até eles todos os dias, deve ser impossível separar o joio do trigo.

Há mais de dez anos, tenho um canal com mais de 4 milhões de inscritos no YouTube. De acordo com o ChatGPT, as estimativas mais confiáveis são de que eles publiquem de 2,5 milhões a 3 milhões de vídeos por dia. Nunca vi uma propaganda falsa em meu nome. Ao longo de todos esses anos, nas duas ou três vezes em que comunicamos alguma incorreção, ela foi imediatamente retirada.

Se a tecnologia do YouTube consegue identificar e eliminar golpes com tamanha eficiência, por que o mesmo não acontece com o Instagram e o Facebook? A resposta está nos 16 bilhões de dólares anuais que a plataforma fatura com eles. •

Publicado na edição n° 1389 de CartaCapital, em 26 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mentiras lucrativas’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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