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Jornada sem fim

Reformas ultraliberais forçam o aumento da carga laboral no mundo, apesar dos efeitos discutíveis

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Contrarreformas. Manifestantes saem às ruas na Grécia contra a proposta do governo de 13 horas diárias. Aliados de Milei sugerem turnos de 12 horas – Imagem: Aizar Raldez/AFP e KKE/Partido Comunista da Grécia
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O mundo do trabalho passa por transformações aceleradas, que apontam em direções opostas. Ao mesmo tempo cresce o número de países nos quais as jornadas semanais são encurtadas e também o daqueles em que as horas extras são multiplicadas indefinidamente. De um lado, pesa o argumento de que a redução das horas trabalhadas produz bem-estar e promove uma vida cujo sentido transcende a mera subsistência. De outro, imperam as promessas de que a multiplicação das horas extras gera mais riqueza e maiores salários. Ambos os campos, embora opostos, garantem que seus modelos aumentam a produtividade, por vias distintas.

A redução da jornada ganha fôlego sobretudo nos países em que a organização sindical é forte, e onde os governos de turno são de esquerda. Socialistas, social-democratas, verdes e trabalhistas apoiam e promovem a ideia de que trabalhadores felizes produzem mais, e de que a felicidade é inversamente proporcional às horas trabalhadas. Do lado contrário, governos neoliberais, guiados mais pelos sindicatos patronais e pelo mercado do que por considerações de cunho social, acreditam que cada empregado tem o “direito” de decidir por conta própria quantas horas de seu dia quer dedicar ao trabalho.

Essa ideia de liberdade total nas negociações aparece normalmente em “­perío­dos de crise econômica”, afirma Antônio Megale, sócio do escritório de direito trabalhista LBS e integrante do Instituto Lavoro, que pesquisa relações de trabalho e direitos sociais no mundo. É nessas horas que, segundo ele, “os direitos de quem trabalha são flexibilizados por meio das chamadas reformas trabalhistas, que resultam na prática em redução de direitos e enfraquecimento da proteção social, sob o argumento falacioso de estimular a economia e criar empregos”.

Na Argentina, a deputada Romina Diez, do mesmo partido do presidente Javier Milei, o Liberdade Avança, propôs a ampliação da jornada diária de 8 para 12 horas, com a justificativa de incorporar 8 milhões de trabalhadores atualmente marginalizados no mercado informal e, com isso, aumentar a arrecadação tributária de um governo obrigado a pedir socorro aos Estados Unidos para conseguir fechar as contas. Além da multiplicação das horas extras, o projeto de Diez prevê a possibilidade de o empregador pagar uma parcela maior do salário com vale-refeição ou cestas básicas, além de acabar com a obrigatoriedade da contribuição sindical e de autorizar o parcelamento de multas trabalhistas em até 12 vezes.

Na Grécia, a situação é parecida. O ­país europeu passou por uma megacrise financeira em 2010 e, desde então, impõe pesado arrocho à própria população para se enquadrar nas exigências dos empréstimos devidos à União Europeia e ao Fundo Monetário Internacional. Lá, a legislação passou a permitir, desde 2024, a escala de seis dias semanais, com jornadas diárias de 8 horas. Mas a atual­ ministra do Trabalho, Niki ­Kerameos, defende que trabalhadores e empregados possam negociar jornadas de até 13 horas diárias. “A ampliação da jornada surge como resposta de curto prazo a crises estruturais, mas sem analisar e sem pensar em antídotos contra as suas causas: a desigualdade, a informalidade e a concentração de renda”, diz Megale.

Grécia, Japão e Argentina, entre outros, propuseram elevação das horas trabalhadas

No Japão, a nova primeira-ministra, Takaichi Sanae, que assumiu em outubro como a mais nova estrela do liberalismo local, pediu a seu ministro da Saúde, Trabalho e Bem-Estar Social, Ueno Kinichiro, que apresente uma proposta de flexibilização da jornada laboral. Os japoneses não tinham nenhum limite para horas extras, até 2019, quando o então ­premier Shinzo Abe fixou o teto de 45 horas semanais, com brechas para limites de até 100 horas em casos especiais. A reforma de Abe, considerada civilizadora à época, corre agora o risco de cair por terra, sob o argumento patronal de tornar a economia mais competitiva. Os japoneses olham certamente para o caso da Coreia do Sul, onde, em 2023, o então primeiro-ministro, Yoon Sul-yeol, aumentou de 52 horas para 69 horas a jornada semanal, abrindo a possibilidade de intercalar turnos intensivos com folgas mais longas.

João Victor Figueiredo Soares, advogado no escritório LBS, fez, a pedido de CartaCapital, um levantamento de países que avançam na direção contrária. Reino Unido, Portugal e Alemanha são exemplos em que a produtividade cresceu à medida que as horas trabalhadas diminuíram. Esses experimentos elencados por Soares foram conduzidos por uma organização chamada 4 Day Week Global (Semana Laboral de 4 Dias no Mundo, em tradução livre), que, desde 2019, produz, em parceria com empresas, sindicatos, universidades e governos, testes de redução de jornada, com monitoramento de vários indicadores aferíveis.

O maior experimento ocorreu no Reino Unido, em 2022, com 61 empresas e cerca de 2,9 mil trabalhadores. Os britânicos registraram redução de 71% no nível de burnout, queda de 65% nos dias de afastamento por licença médica, aumento de 1,4% na receita média das empresas e mais de 90% de adesão ao modelo proposto, após o fim do experimento.

Portugal fez um laboratório piloto com 21 empresas, entre junho de 2023 e janeiro de 2024, recolhendo avaliação positiva em 95% dos casos. Apesar dos resultados, o atual governo, de centro-direita, acaba de propor a flexibilização das leis trabalhistas, com jornadas de até dez horas diárias. Na Alemanha, o piloto foi feito com 45 empresas, em 2024 e 2025, resultando na diminuição de 60% nas reuniões e no aumento de 25% na adoção de ferramentas digitais que agilizam o trabalho. A Bélgica adotou, em fevereiro de 2022, o meio-termo: o indivíduo pode reduzir os dias trabalhados na semana, redistribuindo as horas em jornadas que não excedam 9,5 horas por dia.

No Brasil, a proposta para acabar com a escala 6×1 está na Comissão de Trabalho da Câmara dos Deputados, e deve ganhar impulso com o engajamento do governo Lula, que tem mobilizado parlamentares da base aliada e movimentos sociais para fazer avançar um projeto sobre o tema, que teria tramitação mais rápida que aquela de uma Proposta de Emenda Constitucional. Há forte resistência das entidades patronais, principalmente no comércio e nos serviços. •

Publicado na edição n° 1388 de CartaCapital, em 19 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Jornada sem fim’

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