Mundo
Quatro contra uma
Um quarteto reacionário disputa a vaga de adversário da comunista Jeannette Jara no segundo turno das eleições
Na primeira eleição presidencial após a instituição do voto obrigatório, sob pena de multas que podem variar ao equivalente entre 100 e 500 reais, mais de 15 milhões de chilenos escolherão no domingo 16 os dois candidatos que se enfrentarão no segundo turno. A comunista Jeannette Jara, candidata oficial, lidera as intenções de voto, mas a direita, caso se una, reúne maiores condições de eleger o substituto de Gabriel Boric. Quatro nomes direitistas disputam palmo a palmo a vaga oposicionista para enfrentar Jara: o veterano senador Jose Antonio Kast, o extremista Johannes Kaiser, Evelyn Matthei e Franco Parisi. “Milhões que irão votar pela primeira vez não possuem cultura política ou ideologia, podendo escolher no último momento, com grande influência das redes sociais. São eleitores que podem optar por Jara, Kast ou Kaiser sem maiores contradições”, afirma o sociólogo Ivan Carrasco Mora.
A imprevisibilidade do resultado contrasta com uma campanha dominada pelos reacionários em relação à segurança e migração, com propostas para reduzir a maioridade penal e tornar mais rigoroso o controle das fronteiras, pautas com grande apelo em estratos sociais ameaçados pela criminalidade e inconformados com o número de estrangeiros ilegais, estimados em mais de 300 mil. “Os chilenos estão preocupados com a inflação dos bens de consumo básicos e da conta de energia, além das aposentadorias insuficientes e a insegurança. O mal-estar generalizado volta-se contra o governo, razão pela qual parte dos eleitores se aproxima da extrema-direita, não tanto por identificação, mas por ser uma alternativa à precária situação que enfrentam em seus cotidianos”, completa Mora.
O engenheiro Patricio Gahona Rojas, morador de Santiago, integra o grupo dos insatisfeitos, estimado em 60% da população, e já tomou seu partido. “A economia piorou muito. Em quatro anos, o valor dos combustíveis dobrou, o quilo do pão triplicou. Kast se diferencia por seu discurso coerente e tem chances reais de vitória”, diz, em referência ao senador que promete não só expulsar imigrantes sem documentação, mas obrigá-los a pagar o custo da deportação.
No espectro oposicionista, em que pesem as prováveis alianças futuras, os candidatos apresentam diferentes estratégias e características. “Kaiser é o mais radical, vinculado a novos movimentos de direita, ao antiglobalismo, no estilo Javier Milei. Matthei conquista boa parte do piñeirismo, simpatizantes do ex-presidente Sebastián Piñera, eleito duas vezes, e tenta aproximar-se do centro”, descreve o jornalista Mauricio Gandara. “Kast é mais religioso, na linha Opus Dei. Kayser é desbocado, pouco estudioso. Ambos fascistas. Franco Parisi, por sua vez, tenta emplacar a ideia de outsider”, sintetiza a estudante Manuela Belén. A intensidade da disputa é terreno fértil para as fake news. Uma das mais compartilhadas afirma que Matthei, prefeita até 2024 de Providencia e política experimentada em vários cargos, teria Alzheimer. Tais mensagens foram amplamente replicadas por contas ligadas ao partido de Kast, que pediu desculpas depois do leite derramado.
Pela primeira vez, o voto será obrigatório
A força eleitoral da esquerda, apesar da baixa aprovação de Boric, pouco superior a 30%, conforme o instituto Criteria, dão fôlego a Jara no primeiro turno, mas tendem a limitar seu desempenho na segunda volta. A esperança governista está na própria candidata, carismática e reconhecida pelos chilenos como uma excelente ministra do Trabalho, responsável por aprovar a redução da jornada sem corte no salário. Para os críticos, a comunista perdeu, no entanto, a capacidade de ampliar o eleitorado ao não demonstrar certa independência em relação à administração de Boric. “Aqui há o voto herdado. É como no futebol, quando o filho acompanha os pais na torcida por um time. Se a família tem uma posição política, costuma haver consonância entre seus integrantes, mas é preciso ir além para ampliar apoios”, comenta o ator Nuno Hidalguez, enfatizando a presença da comunista em atos no Norte, onde se concentra o fluxo migratório. No arquipélago de Juan Fernández, onde vivem, aproximadamente, mil habitantes e a campanha praticamente não chega, a professora Natalia Ortega elogia a ação estatal. “Depois de 14 anos do tsunami, é a primeira administração que está construindo uma nova escola”, ao citar um dos maiores desastres naturais registrados no país, em 2010, com mais de 500 mortos.
Esses e outros problemas socioambientais podem agravar-se com a flexibilização de parâmetros regulatórios e a redução de áreas protegidas, alega o ambientalista Cristóbal Sepúlveda. “A lei de fast check ambiental é um retrocesso. Há casos críticos. Calama sofre com a contaminação histórica causada pela mineração, o resíduo industrial nas zonas de Quintero e Puchuncaví segue a provocar casos de intoxicação.” É uma referência às chamadas zonas de sacrifício, territórios assim classificados pelo esgotamento causado pelo extrativismo e cadeias econômicas a ponto de inviabilizar a vida humana. Em tempos de COP30, o pesquisador afirma que a participação da delegação chilena deveria evidenciar as ameaças de retrocesso e riscos para os defensores da terra. Nesse contexto, está o caso de grande repercussão envolvendo o desaparecimento, há mais de um ano, da líder mapuche Julia Chuñil, após denunciar a ação predatória de empresas.
Outro ponto que gera debates inflamados é o projeto do candidato Kaiser de indultar militares condenados por crimes durante a ditadura. A partir de 2026, o presídio de Punta Peuco, até então exclusivo para integrantes das forças armadas, passará a ser uma penitenciária comum, situação que desagrada aos segmentos reacionários.
Em meio a dilemas e conflitos internos, o Chile pode ter protagonismo internacional em outra frente, com a candidatura da ex-presidente Michelle Bachelet para o Secretariado-Geral da ONU. Sobre esse tema há mais consenso. Segundo a organização Cadem, 57% dos entrevistados se sentiriam orgulhosos no caso da nomeação.
Quanto à escolha interna, o cenário permanece incerto. O segundo turno está marcado para 14 de dezembro. •
Publicado na edição n° 1388 de CartaCapital, em 19 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ”
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.


