Política
Saúde reprimida
A Anvisa atrasa a regulação da cannabis medicinal e a polícia fecha o cerco às associações
Queria gritar para todo o mundo ouvir o quanto esse remédio é bom”, afirma a lavradora Dilma Souza Santana. Moradora de Aporá, na Bahia, ela encontrou na cannabis medicinal alívio para os sintomas do marido com Parkinson. Aos 87 anos, Pedro Andrade de Souza não conseguia mais caminhar ou se alimentar sozinho. A esposa levou meses para descobrir o tratamento que trouxe de volta “qualidade de vida e autonomia”. A melhora está ameaçada: a Associação Santa Gaia, produtora do medicamento, foi alvo de operação policial em meados de outubro, com a plantação destruída e os insumos apreendidos. “Agora, não sei se vou conseguir o próximo frasco”, lamenta. A repressão não é caso isolado: mais de dez diretores de associações foram presos recentemente, acusados de tráfico.
Sediada em Lins, no interior de São Paulo, a Santa Gaia atende 9 mil pacientes de várias regiões do País, 250 deles gratuitamente. É o caso de Marina Neigenfind Sousa Laucis Pinto, que recebe em Santarém, no Pará, o remédio para o filho de 4 anos com autismo. Em poucos meses, a criança “passou a comer e dormir melhor e a socializar com os colegas”, relata a mãe solo. Beneficiária do Bolsa Família, a artesã cogitou comprar o medicamento em farmácia, mas não teria condições de pagar 500 reais a cada três meses. Sem previsão de receber os próximos frascos, teme interromper o tratamento.
A batida ocorreu em 16 de outubro, após vizinhos denunciarem “cheiro de maconha”. Insumos, derivados e medicamentos prontos foram apreendidos. A plantação, com 466 pés de cannabis e outros 96 em fase de produção de óleo, foi destruída. O diretor da Santa Gaia, Guilherme Viel, foi preso em flagrante, acusado de crime contra a saúde pública e tráfico de drogas. Para o advogado Antônio de Pádua Pinto, a ação foi desproporcional. “Guilherme foi algemado e jogado no ‘curral’ da delegacia. O crime de adulteração de medicamento tem pena maior que a de tráfico”, explica. Sem antecedentes, permaneceu preso após a audiência de custódia. Cinco dias depois, o desembargador Paulo Fontes, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, concedeu liminar, permitindo à associação retomar as atividades.
O delegado Artur Franco, da Delegacia de Investigação sobre Entorpecentes de Lins, afirma que o crime contra a saúde pública se refere à produção e venda de medicamentos sem registro. “Encontramos grande quantidade de produtos já envasados, com rótulo da Santa Gaia, sem autorização da Anvisa.” Não tinham nem poderiam obter. Em novembro de 2024, o Superior Tribunal de Justiça autorizou o cultivo de cannabis para fins terapêuticos e concedeu seis meses para que a agência definisse normas sobre importação de sementes, plantio, produção e venda dos medicamentos. O prazo não foi cumprido e o órgão pediu duas prorrogações.
Segundo o advogado Emílio Figueiredo, do Conselho Nacional de Política Sobre Drogas, as associações sempre estiveram em risco porque, na lei, cultivam uma planta proibida. “Mas o objetivo é produzir e distribuir medicamentos. Não faz sentido considerá-las criminosas”, avalia.
Nos últimos meses, mais de dez dirigentes de ONGs foram presos e acusados de tráfico de drogas
“Foi uma cena de terror”, relembra Caroline Penques, esposa de Viel e diretora-administrativa da ONG, ao comentar a operação. Após horas de negociação com os policiais, ela conseguiu levar na carceragem o remédio para o marido, que trata ansiedade e TDH com cannabis. “Até seu frasco pessoal foi confiscado, e ele precisou tomar medicação química para aliviar a crise.” No dia seguinte, ela juntou-se a pacientes em uma manifestação na porta da delegacia. “Queríamos que ele soubesse que não estava sozinho.”
A repressão tem se intensificado nos últimos anos. Um caso emblemático é o de Fernando Goulart Giubert Filho, diretor da F7, em Franca (SP), preso há sete meses, mesmo sem ter antecedentes criminais. Segundo o advogado Eric Torquato, a prisão preventiva baseou-se no que chamou de “pânico moral pela circulação de maconha”. Casado e pai de duas meninas, Giubert, de 33 anos, enfrenta desde a adolescência problemas psiquiátricos e encontrou alívio na cannabis medicinal. “A polícia ignora a atividade associativa e o trata como traficante”, lamenta Torquato. No Centro de Detenção Provisória de Franca, ganhou o apelido de “Zé Gotinha”, pois os agentes administram as gotas do remédio diariamente. Para o advogado, a prisão “é sintoma da covardia do Estado, que não regulamenta, não oferece alternativas acessíveis e criminaliza pacientes que buscam o direito à saúde”.
O economista e professor Marco Antônio Carboni também foi preso, no ano passado, durante uma operação policial no sítio do Instituto CuraPro, em Jundiaí (SP). Passou uma noite na cadeia: “Fui tratado como bandido. Mãos algemadas para trás, cabeça baixa, arma apontada contra mim. Horrível”. A cela, compartilhada com seis detentos, deixou lembranças piores: “Fétida, nojenta, com colchão duro de tanto cocô e urina”. Liberado na audiência de custódia, responde em liberdade, mas com restrições, incluindo a proibição de produzir os remédios e exercer sua profissão. “Não sei como o juiz espera que eu pague aluguel e alimente minha família.”
Como muitas associações, o CuraPro surgiu de necessidade pessoal. Carboni importava remédios dos EUA para tratar a mãe, mas, com a alta do dólar, passou a produzir os insumos e fundou a associação com base em habeas corpus de dois pacientes. Ciente da fragilidade jurídica, em 2021 protocolou ação no TRF da 1ª Região para tentar regulamentar as atividades, que ainda não foi julgada. Apesar das restrições, mantém um projeto social na favela de Paraisópolis, em São Paulo, atendendo mais de 600 pacientes com óleo de cannabis e acompanhamento psicológico.
Mesmo com decisões judiciais, as associações seguem vulneráveis à repressão policial. Há outro impasse legal: para recorrer à Justiça, é preciso primeiro violar a lei. “Todas começaram com desobediência civil, porque não é possível solicitar habeas corpus sem plantar”, diz Torquato. O deputado estadual Eduardo Suplicy (PT), usuário e defensor da cannabis medicinal, defende que o modelo associativo seja reconhecido pelo governo. “Enquanto não houver regulamentação, haverá judicialização. As associações prestam um serviço que deveria ser feito pelo Estado.” •
Publicado na edição n° 1388 de CartaCapital, em 19 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Saúde reprimida’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.


