

Opinião
A síndrome do avestruz
Ou enfiamos nossas cabeças na terra ou abrimos os nossos olhos para a crise climática e tomamos as rédeas do desenvolvimento sustentável
Prezado leitor, você certamente concorda: esta semana foi especialmente triste para nós brasileiros, com violência sem precedentes no Rio, catástrofes naturais no Sul e casamento e aborto na infância sem proteção.
Diante de tantas notícias terríveis, meu coração teve um lampejo de esperança com o Brasil sediando a COP30, combatendo o negacionismo e recebendo líderes de diferentes lugares do mundo dispostos a discutir o desenvolvimento sustentável como o único caminho possível para evitar o caos da vida humana na Terra.
Ingenuidade minha? Talvez. Mas sou da opinião de que temos de ter esperança, pois a alternativa seria enfiarmos nossas cabeças na terra como avestruzes irresponsáveis e enlouquecidos.
Em uma manhã, esta semana, me deparei com a seguinte notícia da BBC: “Os milionários donos das big techs estão construindo bunkers subterrâneos na Califórnia e na Nova Zelândia para se protegerem de um provável cataclismo global! (avestruzes?)”.
“O que eles sabem que a gente não sabe?”, indagava o repórter. Nada! Já sabemos o suficiente e, se tivéssemos o poder e o dinheiro dessa ínfima porção da humanidade – detentora da maior renda de todos os viventes no planeta –, talvez, do alto de nosso egoísmo, em vez de ajudar a procurar soluções, estivéssemos fazendo nossos abrigos.
Os eventos climáticos extremos estão aí para quem quiser ver. Não há mais dúvida de que o planeta atingiu um período crítico, mas ainda não irreversível – segundo os cálculos da ciência. E não foi por falta de aviso.
Extremos de calor têm sido mais frequentes, descortinando o cenário da crise climática mesmo para os mais céticos. Tempestades violentas, nunca vistas no Sul do Brasil, são resultado de anos de desmatamento do Centro-Oeste pelos próprios fazendeiros que vieram do Sul e, agora, presenciam o desequilíbrio climático destruindo suas casas e ceifando vidas.
Pasmem vocês: as cenas dos tornados recentes do Paraná foram questionadas nas redes sociais como sendo fabricadas por IA. Os mesmos negacionistas seguem a negar o horror com o qual se deparam.
É mais que chegada a hora de abrirmos os nossos olhos e tomarmos as rédeas do desenvolvimento sustentável. Nós, médicos, como conhecedores da ciência e formadores de opinião, devemos ser os primeiros a encabeçar esse movimento.
O aumento da temperatura ambiente tem impacto direto na piora de prognóstico e no desenvolvimento de inúmeras doenças pulmonares, cardíacas, neurológicas e até psiquiátricas.
A exposição ao calor afeta indivíduos em todos os estágios de vida e, nos extremos de idade, a vulnerabilidade é maior. Tal vulnerabilidade tem, porém, a condição socioeconômica como determinante direto. Os mais pobres têm maior risco em todos os cenários do caos climático.
Comportamentos práticos de adaptação podem ajudar as pessoas a manejar riscos à saúde relacionados ao calor. Entre eles estão hidratação, telhados verdes e plantio de árvores em volta das casas. Há, ainda, sistemas de alerta antecipado de ondas de calor. E o ajuste de dosagem de medicamentos como diuréticos e anti-hipertensivos pode ser necessário em situação de calor extremo.
De acordo com artigo de revisão no BMJ, entre as pessoas com mais de 65 anos, a mortalidade relacionada ao calor aumentou, globalmente, 167% em 2023, em comparação com a década de 1990.
A doença cardiovascular surge como a principal causa de morte relacionada à onda de calor, com um aumento de 12%. Cada aumento de temperatura de 1 °C aumenta a mortalidade em 2,1% e a morbidade em 0,5%, com maior risco de acidente vascular cerebral, doenças das coronárias e insuficiência cardíaca.
Evidências epidemiológicas associam a exposição ao calor extremo a um aumento de 11,6% no risco de internação hospitalar por doença renal crônica e de cerca de 10% para doenças respiratórias. Constatou-se também a piora de doenças neurológicas e psiquiátricas, incluindo demência, doença de Parkinson, depressão e ansiedade e distúrbios comportamentais.
Já se demonstrou elevação de 16% no risco de partos prematuros durante ondas de calor, com aumento de natimortos.
O caminho a ser percorrido já se conhece: preservação do meio ambiente e reflorestamento e agricultura e pecuária sem desmatamento, com técnicas modernas de preservação e proteção dos mananciais; abandono do uso de petróleo e plástico que vem dele; e educação e cuidado com as populações mais vulneráveis.
Não há tempo a perder. A sociedade tem de se mobilizar, independentemente de qualquer ideologia. Citando o magnífico Guimarães Rosa, o que a vida quer da gente é coragem. •
Publicado na edição n° 1388 de CartaCapital, em 19 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A síndrome do avestruz’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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