

Opinião
Segundas intenções
A proposta de Derrite visava enquadrar movimentos sociais como organizações terroristas
Se hoje a extrema-direita busca formas para transformar grupos criminosos e o narcotráfico em facções terroristas, a ofensiva pode ser apenas o início de um processo que ameaça movimentos sociais. Um documento preparado pelo Executivo ao qual CartaCapital teve acesso aponta uma das preocupações em relação às mudanças no PL Antifacção apresentadas pelo deputado Guilherme Derrite: o risco de criminalização de entidades como o MST. Sob pressão, as alterações de Derrite acabaram desidratadas, mas o fato de terem sido propostas revelou a muitos a intenção de criar uma brecha para classificar como terroristas basicamente qualquer protesto, manifestação e a atuação de diversos movimentos sociais, entre eles o MST e o MTST, ou manifestações legítimas, como aquelas de trabalhadores de aplicativos, caminhoneiros ou professores.
Os critérios para declarar um grupo como “facção terrorista” incluíam atos que poderiam estar associados a protestos. Num dos artigos, seriam classificados como “terroristas” quaisquer grupos que atuem para “restringir, limitar, obstaculizar ou dificultar, ainda que de modo temporário, a livre circulação de pessoas, bens e serviços, públicos ou privados, sem motivação legítima reconhecida pelo ordenamento jurídico”.
O mesmo PL apontava como terrorista o movimento que “usar explosivos, armas de fogo ou equipamentos para prática de crimes contra instituições financeiras de qualquer natureza, base de valores ou carros-fortes, ou para interromper, total ou parcialmente, fluxo terrestre, aéreo ou aquaviário, com o objetivo de obstruir, dificultar ou postergar a atuação preventiva ou repressiva do Estado”. Também ficava determinada a nova classificação caso grupos atuassem para “incendiar, depredar, saquear, destruir ou explodir meios de transporte”.
Ainda que atos violentos devam ser investigados e seus atores levados à Justiça, o que o governo alertava era que considerar esses critérios como elementos suficientes para qualificar uma entidade como “terrorista” abriria uma via ampla para legitimar o velho sonho da ala ultraconservadora de criminalizar os movimentos sociais.
A ofensiva não é uma exclusividade da extrema-direita brasileira. Nos Estados Unidos, Donald Trump usou a morte do influenciador Charlie Kirk para lançar uma ofensiva contra os mesmos grupos de esquerda. Em setembro, o presidente norte-americano assinou uma ordem executiva que designava o grupo Antifa como uma “organização terrorista doméstica”. Poucos dias depois, emitiu o Memorando Presidencial de Segurança Nacional sobre o Combate ao Terrorismo Doméstico e à Violência Política Organizada. O documento orienta as agências federais a priorizar investigações de uma série de identidades e ideologias que descreve como pertencentes ao “guarda-chuva do autodenominado ‘antifascismo’”. Isso inclui “antiamericanismo, anticapitalismo e anticristianismo; apoio à derrubada do governo dos Estados Unidos; extremismo sobre migração, raça e gênero; e hostilidade contra aqueles que defendem visões americanas tradicionais sobre família, religião e moralidade”. A lista permite que sejam colocados no radar da Justiça os sindicalistas, críticos do cristianismo, grupos pró-imigração, manifestantes anti-ICE e ativistas da justiça racial e transgênero, até qualquer cidadão que defenda opiniões que o governo considere “antiamericanas”.
O memorando orienta as agências governamentais a perseguir “todos os participantes dessas conspirações criminosas e terroristas – incluindo as estruturas organizadas, redes, entidades, organizações, fontes de financiamento e ações subjacentes”. E pede que as Forças-Tarefa Conjuntas de Combate ao Terrorismo atuem para “coordenar e supervisionar uma estratégia nacional abrangente para investigar, processar e desarticular entidades e indivíduos envolvidos em atos de violência política e intimidação destinados a suprimir atividades políticas legítimas ou obstruir o Estado de Direito”.
Por fim, orienta o secretário do Tesouro a “desmantelar as redes financeiras que financiam o terrorismo doméstico e a violência política”. No contexto da vasta conspiração antifascista evocada pelo governo, os investigadores poderiam bloquear as contas bancárias e as transações financeiras de várias organizações simplesmente porque elas se opõem à administração Trump.
O avanço da extrema-direita ameaça o Estado de Direito e conquistas sociais obtidas ao longo de décadas. Mas sua ambição vai além: asfixiar os movimentos sociais e os que representam focos de resistência ao projeto autoritário. •
Publicado na edição n° 1388 de CartaCapital, em 19 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Segundas intenções’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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