Opinião

Cristo teria fome em Porto Alegre

Enquanto a Câmara quer multar quem alimenta os pobres, o Evangelho recorda que negar pão ao faminto é negar o próprio Cristo

Cristo teria fome em Porto Alegre
Cristo teria fome em Porto Alegre
A Comandante Nádia, prefeita interina da capital gaúcha, quer multar quem alimentar moradores de rua fora das regras que ela própria pretende estabelecer (Foto: Wikimedia Commons)
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“Tive fome e me deste de comer; tive sede e me deste de beber…”
Jesus Cristo

Nesse Evangelho de Mateus, o Cristo aclara que todos os que assim fizerem ao menor dos pequeninos terão feito ao próprio Jesus e, consequentemente, herdarão o Reino dos Céus.

Em Porto Alegre, entretanto, a presidente da Câmara Municipal — uma certa Comandante Nádia (PL) — quer multar quem alimentar moradores de rua fora das regras que ela própria pretende estabelecer.

Típica hipocrisia da extrema-direita, que ainda por cima se julga cristã.

Porém, como Martin Luther King dissera: “O que me preocupa não é o grito dos maus, é o silêncio dos bons.”

O arcebispo de Porto Alegre — cardeal e, graças ao Papa Francisco, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e do Conselho Episcopal Latino-Americano e Caribenho (CELAM) — não deveria se pronunciar contra esse flagrante atentado ao direito humano à alimentação, previsto e consagrado no artigo sexto da Constituição Federal? Os direitos humanos não devem ser protegidos, promovidos e providos?

Quando Cristo voltar à Terra, provavelmente não encontrará muitos cristãos, mas uma abundância de fariseus hipócritas, com suas leis e regras vazias de caridade e amor ao próximo — e ao próprio Deus que dizem adorar, mas o fazem apenas com a boca, sem ações que deem significado às próprias palavras.

Com efeito, uma das características do mal é ser pesado, proibitivo, gerador de insegurança. Assim, produz medo — e o medo tolhe-nos a capacidade de agir e reagir.

Por isso, a direita se guia pelo enclausuramento, como fazem Bukele em El Salvador e Trump nos Estados Unidos, este transformando imigrantes em bodes expiatórios — como antes foram os judeus, os comunistas, os homossexuais, os ciganos e as Testemunhas de Jeová durante o nazismo e o fascismo.

No Brasil, age dessa forma o desgovernador do Rio de Janeiro, com sua política de chacinas que visam a ganhar apoio do eleitorado, sem resultado prático no combate ao crime organizado.

Não está só. Os desgovernadores de São Paulo e do Rio Grande do Sul também buscam confinar as populações, privatizando espaços públicos e impondo pedágios sobre a circulação de pessoas e bens.

Esses que se dizem bons gestores são, na verdade, tudo menos isso. Suas contas só se fecham com a venda de patrimônio público — o patrimônio de todos nós. Fazem cumprimento com chapéu alheio e pagam suas contas com recursos coletivos.

Isso se aplica a São Paulo, ao Rio Grande do Sul, ao Paraná e ao Rio de Janeiro, entre outros estados.

Em São Paulo, foram os 15 bilhões da Sabesp — a maior empresa de saneamento da América Latina — que permitiram ao desgovernador fechar as contas no azul. Isso é ser bom gestor?

O mesmo fez o desgovernador do Rio, privatizando a Cedae em 2021. Atualmente, a Assembleia fluminense discute sua proposta de venda de 62 imóveis, dentre os quais o próprio estádio do Maracanã. Nesse andar da carruagem, é de se temer que o faça proximamente com o Cristo Redentor — e sem oposição de monta.

No Rio Grande do Sul, o desgovernador privatizou a empresa de energia — uma das maiores do estado — e a de água. Pior: arrecadou quantia irrisória, mantendo o RS no vermelho.

No Brasil, o capitalismo é tão selvagem que não se pagam sequer as externalidades negativas.

Por exemplo, restaurantes geram resíduos orgânicos que são simplesmente despejados em lixeiras comuns — em geral abertas e não preparadas para recebê-los. A insalubridade que resulta disso afeta toda a comunidade.

Os setores progressistas, por outro lado, enfrentam grande dificuldade em proclamar, em alto e bom som, que se necessita mais Estado, não menos. Provavelmente o fazem por terem restrições, eles mesmos, a um Estado participativo — que muito proclamam, mas pouco praticam.

Em meio a essa barafunda, que felicidade a eleição do primeiro-ministro da Holanda: progressista, gay, casado com um jogador de hóquei argentino, derrotando a extrema direita sem medo de ser feliz.

Idem para a eleição do novo prefeito de Nova York, Zohran Mamdani — ugandense de nascimento, muçulmano e socialista democrático.

Um ar novo penetra pelas janelas da política internacional, afligida pelos mesmos dramas que levaram o mundo ao holocausto da Segunda Guerra Mundial.

A propósito, por ocasião da COP30, em Belém, vale citar a obra do martinicano Malcolm Ferdinand (Editora Ubu), Uma Ecologia Decolonial, em que recorda o conceito de justiça de Martin Luther King:
“A verdadeira paz não é somente a ausência de tensão, e sim a presença de justiça.”

Malcolm também lembra:
“A única linguagem ‘política’ formulada ao escravizado é a da guerra, do combate — em suma, do comando e da violência.”

Ou seja, reduzi-lo a objeto, não a agente.

Ferdinand conclui:
“As autoridades coloniais só consideraram os escravizados como sujeitos políticos a partir do momento em que foram humilhadas na guerra ou na prática. Foi o caso de muitas comunidades quilombolas, do Brasil à Jamaica, passando pelo Suriname, que, tendo frustrado o aparato militar colonial, assinaram tratados na posição de partes contratuais. Do mesmo modo, foi apenas depois das múltiplas humilhações de Bonaparte impostas por Toussaint Louverture, por Dessalines e por seus companheiros que uma possível composição política com o outro passou a ser considerada.”

Que a COP nos deixe o legado de nunca, jamais dissociar a justiça socioeconômica da ambiental. Será uma herança de valor para as gerações futuras.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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