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Um ator no espelho

Wagner Moura vê, nos personagens vividos no filme O Agente Secreto e na peça Um Julgamento, muito de si mesmo

Um ator no espelho
Um ator no espelho
Volta para casa. O papel de Marcelo, em O Agente Secreto, marca seu retorno ao cinema brasileiro após uma sequência de filmes e séries em inglês e espanhol – Imagem: Vitrine Filmes
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A porta dos 50 anos, Wagner Moura, dono de um dos rostos mais em­ble­má­ti­cos do cinema brasileiro con­tem­po­râ­neo, olha para o sucesso com serenidade. “Tenho uma consciência muito maior do que quero para a minha vida, do tipo de artista que sou”, diz ele, que acaba de viver dois papéis irmanados.

No teatro, ele estreou, em Salvador, em outubro, Um Julgamento – Depois do Inimigo do Povo, adaptação de um texto de Henrik Ibsen em que interpreta o médico e cientista Thomas Stockmann, um homem perseguido por buscar defender a verdade.

Nos cinemas, pode ser visto, desde a quinta-feira 6, em O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho. No longa-metragem, ele faz o papel de Marcelo, um professor que, durante a ditadura, se vê ameaçado, simplesmente, por viver de acordo com seus valores. Em ambos, o ator vê um pouco de si – e de sua vida.

Seu sólido percurso, iniciado no teatro, na Bahia natal, e sedimentado em filmes como Deus É Brasileiro (2003), Saneamento Básico, o Filme (2007) e Tropa de Elite (2007), ­levou-o, na década passada, ao mercado internacional. A estreia em Narcos, em 2015, abriu-lhe as portas para os projetos internacionais que o mantêm desde então com um pé em Los Angeles.

“A arte e a cultura educam o espírito, a alma, a mente e te permitem ver o mundo de forma mais empática e corajosa”

Tem, portanto, certo gosto de volta para casa sua presença no País para um retorno ao palco, com O Julgamento, que fez curta temporada em Salvador e no Rio, e para o lançamento de O Agente Secreto. Foi durante a projeção do filme, em uma sessão na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no Teatro Cultura Artística, que Moura conversou com CartaCapital.

CartaCapital: O Agente Secreto é sua volta a um grande papel no cinema brasileiro depois de muito tempo, e seu personagem, Marcelo, também é alguém que está voltando à cidade de origem. Qual é a sensação de voltar?
Wagner Moura: Voltar ao cinema brasileiro e fazê-lo pelas mãos de Kleber, no Nordeste, no Recife, foi muito especial. Esse foi um projeto em que a gente passou muito tempo, e eu adoro quando as coisas são assim. Fomos alimentando a vontade de trabalhar juntos, pensando: “Vamos falar de quê?” Esse filme, de alguma forma, acontece como uma reação ao que vivemos entre 2018 e 2022. Tanto eu quanto Kleber sofremos consequências das coisas que fizemos e dissemos (ler texto à pág. 50). É massa poder estar hoje num Brasil mais democrático, que valoriza mais a cultura e com um bocado de outros filmes estreando. Enfim, essa é uma pergunta cheia de significado para mim. Nesse filme, voltei ao Recife, uma cidade muito importante na minha vida, porque foi lá que estreei A Máquina (2000). Também voltei a falar português, voltei a falar minha língua. Foi uma filmagem muito feliz do começo ao fim.

Percurso. “A vida está boa no sentido de que estou me conhecendo melhor”, diz Moura – Imagem: Bob Wolfenson

CC: É um filme da sua volta para casa, mas que ao mesmo tempo o devolve para o mundo. O Agente Secreto começou a carreira fora do Brasil, em Cannes, com Kleber e você sendo premiados, e agora está na campanha pelo Oscar.
WM: É curioso mesmo. Vou voltar. Voltei, e aí? Aí foi para o mundo. Acho lindo isso. O prêmio mais importante que ganhei como ator foi esse de Cannes, e ganhá-lo com um filme brasileiro, depois de um tempo trabalhando em inglês e espanhol, é muito especial.

CC: Tem-se falado do bom momento do cinema brasileiro no exterior, com Ainda Estou Aqui, O Último Azul, premiado em Berlim, e O Agente Secreto. O que você tem sentido, nos Estados Unidos, em relação ao cinema brasileiro? Há maior interesse?
WM: Ainda Estou Aqui ganhou o Oscar, e isso abre os olhos das pessoas para a cinematografia brasileira. Acho que a recepção a O Agente Secreto lá fora tem a ver com os méritos do filme, que são muitos, mas ela vem também no rastro de Ainda Estou Aqui. E como é bonito isso. Agora, estou cansado dos ataques feitos pela direita. Não é importante que um filme brasileiro viaje? Um filme que, diga-se de passagem, gera emprego, renda, movimenta uma indústria? Se estou aqui falando com você, hoje, é porque houve políticas públicas em Salvador, nos anos 1990, que fomentaram o teatro. Nosso filme foi aprovado, lá atrás, num edital do Fundo Setorial do Audiovisual e, sem isso, mesmo o projeto tendo várias coproduções, ele não teria sido feito. Aí vejo uma manchete, “Wagner Moura recebe 7 milhões de reais do governo”, como se eu tivesse botado 7 milhões no bolso. É uma coisa tão feia… No meio disso tudo, ver filmes como Manas e Ainda Estou Aqui representando o cinema brasileiro lá fora é um alento.

“Se estou falando com você é porque houve políticas públicas em Salvador, nos anos 1990, que fomentaram o teatro”

CC: Marighella (2019), que o transformou em alvo do governo Bolsonaro, parece tê-lo marcado muito. À altura, você disse a CartaCapital que era como se o filme “marcasse o fim ou o início de alguma coisa”.
WM: Acho que continuo nesse terreno. O Agente Secreto é sobre alguém que quer manter-se fiel a seus valores, quando tudo ao redor é o oposto daqueles valores. Eu falava muito com o Kleber sobre Um Julgamento, adaptação de Ibsen que escrevi com a Christiane Jatahi e o Lucas Paraizo. A peça é sobre alguém que vai até o fim pelas coisas em que acredita, a despeito da mentira, da falácia, da infâmia. Acho que os personagens são sempre um amálgama entre você mesmo e o que foi escrito, e me sinto imbuído desses personagens. Thomas Stockmann, o médico norueguês da peça, e Marcelo conversam muito. A peça é sobre a verdade, e apresenta uma dicotomia entre o imperativo moral e a economia. Tem um cara que descobre uma coisa e diz: “Preciso dizer a verdade sobre isso”. E outro diz: “Olha, se você disser a verdade sobre isso, a comunidade não sobreviverá porque a matriz econômica da cidade é esse lago que você diz que está contaminado”.

CC: Você tem vontade de voltar a dirigir?
WM: Tenho um projeto, nos Estados Unidos, chamado Last Night at the ­Lobster, em que vou dirigir e atuar. O filme é baseado num livro de Stewart O’Nan, sobre um grupo de funcionários de uma cadeia de restaurantes populares que são demitidos uma semana antes do Natal. É um filme de Natal anticapitalista.

Volta aos palcos. Um Julgamento – Depois do Inimigo do Povo estreou em Salvador – Imagem: Caio Lírio

CC: Como tem sido viver nos Estados Unidos sob Trump?
WM: É um pouco como se o ar estivesse mais pesado, mas isso é uma sensação subjetiva. O que eu vi, mais pragmaticamente, foram os imigrantes sendo tratados como bandidos. Os caras vão de máscara em escola, igreja e, se veem uma pessoa com cara de latino, param, pedem documento e deportam. Tem uma evidente escalada autoritária no país.

CC: Sua carreira lá deu muito certo…
WM: Não gosto da palavra carreira. É a minha vida. E não é nem lá nem aqui. É tudo: O Agente Secreto, a peça… A vida está boa no sentido de que estou aprendendo mais coisas, como artista, cidadão, pai; não fico em tela, em rede social; e estou me conhecendo melhor. A arte e a cultura educam o espírito, a alma, a mente e te permitem ver o mundo de forma mais empática, sensível e corajosa. Tenho hoje uma consciência muito maior do que quero para a minha vida, e do tipo de artista que sou. •


Um país e seus labirintos

“Comecei a entender que estava escrevendo um filme de época, mas vários elementos do Brasil contemporâneo estavam ali”, diz Mendonça

por Ana Paula Sousa

Lançamento. O diretor Kleber Mendonça Filho tem viajado o mundo para apresentar O Agente Secreto, premiado em Cannes e agora em cartaz no cinema no Brasil – Imagem: Victor Jucá

Quando começou a desenvolver O Agente Secreto, Kleber Mendonça Filho pensou em um filme de época, passado no período ditatorial brasileiro. Pouco a pouco ele foi, porém, vendo o presente emergir à sua frente. Ecoando a fala de Wagner Moura, o cineasta diz que o fato de ele e o ator terem virado “alvo” da direita no governo Bolsonaro acabou por interferir, de forma difusa, na concepção do longa-metragem.

“Isso tudo que a gente passou foi muito instrutivo, eu diria, para a escrita do roteiro”, – conta ele, em entrevista a CartaCapital. “Tinha, por exemplo, a coisa das redes sociais, sugerindo que somos comunistas. E aí tem uma fala no filme: Você é comunista? Não, eu não sou comunista. Então você é capitalista? Ok, então talvez eu seja mais comunista do que capitalista.”

Enquanto criava o filme, ele viu o ressurgimento de palavras que pensava ultrapassadas, como tortura e ditabranda, e também de ataques ao Nordeste. O cineasta deu-se então conta de algo que hoje fica evidente para quem vê O Agente Secreto: “Comecei a entender que estava escrevendo um filme de época, mas vários elementos do Brasil contemporâneo estavam ali”.

O ambiente no qual se desenrola a trama é aquele da suspeição e da violência à espreita. O filme começa em 1977, no momento em que Marcelo (Wagner Moura), um professor universitário, chega ao Recife, fugindo de algo que o espectador desconhece.

Marcado por uma estrutura labiríntica e por um modo de ser que reputamos como tipicamente brasileiro, O Agente Secreto tem sido muito bem recebido fora do País. Selecionado para a competição do Festival de Cannes, o filme saiu de lá, em maio, com quatro prêmios – dentre eles, os de melhor ator e diretor.

Embora, naquele momento, Mendonça não tivesse essa compreensão, estava começando ali a campanha para o Oscar. Ao retornar ao Brasil, na semana passada, para o lançamento do filme no País, o ­diretor postou em seu ­Instagram: “38 dias longe do Brasil, sete países, uma etapa importante das viagens de O Agente Secreto concluída”.

A indicação do filme para representar o Brasil no prêmio hollywoodiano foi o sinal verde para que a Neon, distribuidora do título nos Estados Unidos, reforçasse sua ação: “A Neon criou uma agenda, um roteiro, que tem como objetivo fazer o filme cada vez mais conhecido e colocá-lo em situações de prestígio”.

Das viagens para a divulgação do filme, o diretor diz extrair grande prazer. Há, segundo ele, os encontros, as conversas com a crítica e, ainda, a oportunidade de ver seu trabalho projetado em algumas das melhores salas de cinema do mundo.

Dentre elas estão o Grand Théâtre Lumière, em Cannes; o State Theatre, em Sydney, uma construção de 1929, tombada; o Alice Tulley Hall, que recebe parte da programação do Festival de Cinema de Nova York; e o próprio Teatro Cultura Artística, em São Paulo, onde o filme foi exibido na ­terça-feira 28 de outubro.

Antes mesmo de o Festival de Cannes acabar, O Agente Secreto tinha sido vendido pela MK2, a coprodutora francesa do filme, para 94 países. “Bacurau e Aquarius também tiveram uma distribuição internacional muito abrangente, mas O Agente Secreto tem a maior de todas”, diz o realizador que, a partir desta semana, saberá, finalmente, como sua nova história, de novo tão nossa, ecoará por aqui.

Publicado na edição n° 1387 de CartaCapital, em 12 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um ator no espelho’

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