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Defeito de cor

Um ano após a vitória eleitoral de Donald Trump, supremacistas brancos ditam a política na Casa Branca

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Defeito de cor
Seleção antinatural. Enquanto manda embora ou barra imigrantes latinos e muçulmanos, o republicano reverbera as teses dos extremistas brancos – Imagem: Geoff Livingston, Robert Cano/CBO e Daniel Torok/Casa Branca Oficial
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Na noite de 5 de novembro de 2024, numa festa organizada por jovens republicanos em Nova York, a vitória de Donald Trump não foi acompanhada por lágrimas de emoção, mas por berros de revanche, com fortes componentes racistas e xenófobos. Nas declarações eufóricas daquela base mais radical do trumpismo numa madrugada fria, um alerta de que a conquista do poder por eles teria consequências.

A vitória eleitoral de Donald Trump acaba de completar um ano e, juntamente com ela, grupos de extrema-direita e ultraconservadores comemoram o desembarque sem precedentes do nacionalismo e da ideologia dos supremacistas brancos na Casa Branca e nas políticas públicas dos Estados Unidos. Ao longo dos últimos meses, o republicano e aliados desmontaram iniciativas de promoção de equidade racial, denunciaram medidas de cotas como discriminatórias contra brancos e adotaram decretos prevendo que museus deveriam tão somente “glorificar” a história dos EUA, sem referências ao racismo estrutural no país.

Outro sinal da força da ala mais radical tem sido a adoção em leis, discursos e decretos de termos até então usados apenas por supremacistas brancos. Ainda que em muitos casos as postagens nas redes sociais façam um deboche do estrangeiro ou direcionem a mensagens racistas, foi o uso de uma palavra pelo Departamento de Segurança Interna que revelou a penetração da ultradireita: “re-emigrar”. O próprio Trump tem usado o termo com regularidade em postagens em redes sociais. “A América foi invadida e ocupada. Estou revertendo a invasão. Chama-se re-emigração”, afirmou o presidente em junho.

O governo está em uma cruzada contra a chamada “Grande Substituição”

Naquele mesmo mês, ele voltou a escrever, sem dispensar o uso de letras garrafais, que seu governo iria “focar na RE-EMIGRAÇÃO de estrangeiros para os locais de onde vieram e em impedir a entrada de QUALQUER PESSOA que prejudique a tranquilidade interna dos Estados Unidos”. No governo, a palavra tem sido usada para determinar a política de promoção da “autodeportação”. Em troca de um cheque de mil dólares, estrangeiros podem deixar o país. Sem dar provas ou detalhamento, a Casa Branca insiste que, desde janeiro, conseguiu que 1,4 milhão de indivíduos deixassem os EUA.

Na Europa, a palavra tem sido usada pelo partido Alternativa para a Alemanha e por vozes da extrema-direita da Áustria. Para historiadores e analistas políticos, o termo é simplesmente um sinônimo de limpeza étnica e um esforço de suavizar uma operação de deportação de dimensões inéditas. O eufemismo também é explicado por entidades que monitoram a disseminação do extremismo. “O termo é um apelo para que o Estado decida, em massa, deportar aqueles com ascendência não europeia ou não cristã a seus ‘países de origem’. É um conceito-chave de grupos identitários europeus adeptos da teoria da ‘Grande Substituição’ e, usando um eufemismo politicamente correto, é uma proposta de limpeza étnica de pessoas de ascendência não europeia do continente”, anota o Projeto Global Contra o Ódio e o Extremismo. A tese da “Grande Substituição” foi cunhada pelo francês Renaud Camus, que disseminou a ideia de que existiria um plano secreto para mudar a demografia da Europa e, assim, retirar os brancos do poder.

Universo paralelo. Segundo Trump, os brancos sul-africanos, descendentes do apartheid, são vítimas de genocídio – Imagem: Chip Somodevilla/AFP

A avaliação de opositores de Trump e de organismos internacionais é de que não existe nada de “voluntário” nessa política. O que Trump fez foi criar uma situaç­ão insustentável para o imigrante, inclusive com ataques raciais, e não deixar outra alternativa senão a fuga do país. As semelhanças com o passado nazista alemão não são mera coincidência. No fim dos anos de 1930, Adolf Eichmann criou o Escritório Central do Reich para a Emigração de Judeus. Ao estabelecer condições hostis e insustentáveis, o escritório forçaria os judeus europeus a buscar outro continente para viver. No governo norte-americano, assessores de Trump reconhecem o esforço para criar o “Escritório de Re-emigração”, que teria a função de “facilitar o retorno voluntário de migrantes a seus países de origem”.

O recurso às referências de supremacistas brancos se proliferaram também na agência de imigração, conhecido pela sigla ICE, Immigration and Customs ­Enforcement. Um dos cartazes feitos pela agência questiona: “Qual o caminho, homem americano?”, frase em alusão ao livro Which Way, Western Man, escrito pelo supremacista William Gayley Simpson, apoiador de Hitler. Postagens nas plataformas digitais convocam os candidatos a empregos no ICE a “defenderem sua cultura!” Num anúncio ainda designado a buscar novos funcionários pela agência, o ICE alerta: “Estamos sendo invadidos”. Em outro cartaz, com uma estética dos anos 1930, o governo incentiva a população a denunciar vizinhos, caso haja uma suspeita de que estejam no país de forma irregular.

Não é mera coincidência. Eichmann inspira. Kennedy Jr. reverbera – Imagem: Gage Skidmore e Arquivo Público da Alemanha

Na base dessa orientação, ­acusam especialistas, está a eugenia de certos integrantes do governo Trump. ­Donald Earl Collins, professor da American University­, em Washington, alerta que um dos maiores expoentes da ideologia é Robert F. Kennedy Jr., secretário de Saúde. “Duas posições que ele defende publicamente realmente mostram ­Kennedy como um eugenista do ­século XX. Uma delas é sua postura contra as vacinas ao longo dos anos, especialmente a tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola)”, escreveu o acadêmico. “Na ­década de 1990, alguns cientistas chegaram a afirmar que a tríplice viral era responsável pelo aumento na frequência de diagnósticos de autismo em crianças. Embora inúmeros estudos tenham refutado essas alegações, defensores da antivacinação como Kennedy continuam a minar a confiança pública nos programas de vacinação.” Em 2015, o atual secretário afirmou: “Eles tomam a injeção, naquela noite têm febre de 38 graus, vão dormir e, três meses depois, o cérebro deles está destruído. Isso é um Holocausto, o que isso está fazendo com o nosso país”.

Collins prossegue: “A outra posição é o capacitismo, envolto em racismo. Em abril, Kennedy lamentou a crescente prevalência do autismo nos EUA como algo que ‘destrói famílias’, acrescentando que crianças que ‘regrediram para o autismo, nunca pagarão impostos, nunca terão um emprego, nunca jogarão beisebol, nunca escreverão um poema, nunca sairão em um encontro. Muitas delas nunca usarão um banheiro sem ajuda’”. Segundo o professor, o secretário recusa-se a acreditar nos dados de que o autismo não está se espalhado como uma doença, mas que a sociedade possui atualmente melhores ferramentas para identificar mais facilmente indivíduos no espectro social e neurológico, que, de outra forma, levam vidas ativas.

Africanos são barrados, africâneres, acolhidos

A reengenharia demográfica ainda passou por um corte profundo de recursos para programas sociais, numa ofensiva liderada por Elon Musk. A ideia, segundo seus detratores, é de que sobreviveriam apenas os mais fortes numa sociedade, ou aqueles que possam contribuir. Durante a campanha de 2024, em uma entrevista para o apresentador de rádio conservador Hugh Hewitt, Trump estabeleceu uma ligação entre imigração, crimes violentos e genética. “Temos muitos genes ruins em nosso país agora”, acusou. Em outro momento, disse que os estrangeiros estavam “envenenando o sangue de nosso país”.

Longe de apenas exercitar uma retórica ofensiva a determinados grupos, o republicano implementou na prática essa visão. Depois de fechar as fronteiras para mais de uma dezena de nacionalidades, quase todas africanas, e expulsar quem aguardava pelo status de refugiado, o presidente norte-americano anunciou o acolhimento de estrangeiros supostamente alvos de um “genocídio”, os brancos sul-africanos, os africâneres. Para uns, portanto, um muro e violência. Para outros, acolhimento, fralda, celular pré-pago e moradia. Em maio, os EUA receberam os primeiros “refugiados” brancos sul-africanos, concedendo de forma imediata a cidadania e amplos benefícios.

Direto ao ponto. O ICE, a polícia de migração, explora o medo para recrutar agentes dispostos a salvar o país dos invasores – Imagem: Departamento de Imigração dos EUA

Sem dados ou qualquer evidência, Trump alegou que haveria um massacre dos brancos sul-africanos. “É um genocídio. Terrível. Fazendeiros estão sendo mortos. São brancos e vocês (jornalistas) nem falam. Mas, se fosse ao contrário, estariam falando. Não quero saber da cor.” O grupo de africâneres recebeu status especial, justamente enquanto a Casa Branca suspendia a entrada de 100 mil refugiados de dezenas de países, muitos deles em guerra. Quase todos negros. A chegada dos sul-africanos brancos coincidiu ainda com a decisão de retirar os direitos a afegãos, sob a alegação de que essa população não correria risco em voltar ao país de origem.

O governo justificou ter o direito de abrir exceções sempre que os estrangeiros acolhidos não representem uma ameaça ao país e que possam integrar-se facilmente. Grupos de direitos humanos acusaram o governo de racismo ao insinuar que apenas estrangeiros brancos atenderiam aos dois critérios.

Ao desembarcar nos EUA, as famílias foram recebidas com geladeiras recheadas de comida em suas novas casas. Para 2026, o governo anunciou a meta de abrigar 7,5 mil “refugiados”. Todos brancos. •

Publicado na edição n° 1387 de CartaCapital, em 12 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Defeito de cor’

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