Renato Meirelles

Comunicólogo, presidente do Instituto Locomotiva e fundador do Data Favela, autor de 'Um País Chamado Favela' e 'Como Ser Uma Empresa Antirracista'

Opinião

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O fígado e a geladeira

Um é conservador, a outra, desenvolvimentista. A tal polarização é porosa

O fígado e a geladeira
O fígado e a geladeira
Créditos: Valter Campanato / Agência Brasil
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Escrevo como quem passa a vida a ouvir o Brasil real – na fila do posto de saúde, no ônibus lotado, nas pesquisas que lidero aqui no Instituto Locomotiva. A minha conclusão é direta: os extremos fazem muito barulho, mas não são a maioria. A maior parte do País vive fora do ringue e quer solução simples para problema concreto. Cada vez mais pesquisas mostram que os grupos mais engajados são menores e vocais, enquanto a maioria “invisível” não está polarizada e prefere afastar-se da briga. Ou seja, o debate parece dividido em dois porque quem grita ocupa a sala, quem trabalha em silêncio, a maioria, saiu para resolver a vida.

Estudo do meu amigo Pablo Ortellad­o faz uma segmentação interessante do eleitorado, onde não aparecem só dois lados, mas seis perfis. Dois são militantes, dois são conservadores mais moderados, e dois – os “desengajados” e os “cautelosos” – formam essa maioria silenciosa. É com ela que a política tem de voltar a conversar. A foto dos segmentos ajuda a entender por que há tanta contradição aparente: conheci a Dona Alzira, diarista, evangélica e grande usuária dos serviços públicos. Na real, o fígado da Dona Alzira é conservador, mas a geladeira é desenvolvimentista. Tradução: nos valores, ela é prudente, no bolso, quer um Estado que funcione. Esse Brasil híbrido não cabe em rótulo, cabe na feira, onde se comparam preço e qualidade.

Isso nos leva ao primeiro ponto. A polarização no Brasil é porosa. Há convicções fortes nas pontas, mas muito espaço de diálogo no meio. Segundo ponto. Nosso problema é o apagão da última milha. Muita gente decide tarde ou nem vai votar porque ninguém explicou, de forma simples, “o que muda amanhã de manhã”. Terceiro, vivemos em volatilidade. O humor muda com o preço do gás, a vaga na creche, o remédio disponível. Quarto. Sempre há janela para virar opinião quando a conversa é prática e respeitosa. Rótulo não muda voto, recibo muda.

Também é verdade que há uma crise de confiança concentrada em segmentos conservadores mais mobilizados. Desconfiança do Congresso, da imprensa, do STF e do TSE. Essa erosão de confiança ajuda a explicar por que grupos pequenos fazem parecer que o País inteiro está em guerra. É barulho real, mas não é o Brasil inteiro. Por isso, a estratégia de despolarização não é mandar calar a torcida, é ampliar a arquibancada de quem quer jogo jogado com regra clara: transparência, prestação de contas e serviço que chega na ponta.

Quem mostra o caminho dessa virada são as mulheres. Elas são as que mais usam os serviços públicos, tiram senha no CRAS, marcam consulta para os filhos e cobram vagas em creches. Quando a política escuta as mulheres, a pauta sai do Twitter e entra na cozinha: cesta mais barata, iluminação no ponto de ônibus, mutirão de exames, acolhimento em delegacia de mulher. Já vi acontecer. Em Maceió, um ponto de ônibus ganhou luz e câmera depois da pressão de um grupo de mães. O medo caiu e o comércio do entorno melhorou. Ninguém trocou de ideologia, trocaram de humor. Numa outra cidade, o mutirão de catarata virou o assunto da rua e aproximou vizinhos que não se falavam. É a justiça que chega, e quando chega desarma a briga.

Como transformar tese em prática? Primeiro, falar com o meio. Menos sermão, mais serviço. Segundo, fazer campanha na rua com cérebro de dados. Entender microterritórios, levar mensagem curta, testar todo dia. Terceiro, soluções empilháveis: tarifa social mais mutirão de saúde mais crédito produtivo mais zeladoria de bairro. Quarto, respeitar as contradições. Elas não são defeito moral, são mapas de porosidade. Quinto, dar recibo: baixar o preço do feijão vale mais do que mil hashtags.

Sei que há quem desconfie: “Mas o grito não venceu?” O grito influencia, claro. Quando olhamos a sociedade em camadas, vemos, porém, que os mais barulhentos são menores e que a maioria tem muito mais pontos em comum do que aparenta. O papel de quem governa e de quem faz política é tirar o tema da ofensa e trazer para a oferta. O que oferecemos de concreto para a vida dos cidadãos? Quando a oferta é boa, a conversa acontece. E quando a conversa acontece, a ponte aparece.

A democracia brasileira não precisa virar terapia de casal, precisa virar mutirão de bairro. Cada um faz um pouco, todo mundo vê resultado, a confiança volta. Se trocarmos o “quem você é” pelo “o que a sua família precisa”, o ringue esvazia. E a maioria, que já é pragmática, puxa o País para o centro da vida real, onde o fígado pode continuar conservador, a geladeira pode continuar desenvolvimentista e, mesmo assim, a gente se entende. •

Publicado na edição n° 1387 de CartaCapital, em 12 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O fígado e a geladeira’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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