Opinião
Rio de Janeiro e a banalização do mal
Novamente, os territórios foram ocupados de forma brutal, permitindo que o extermínio motivado por interesses diversos fosse realizado. Agora, corpos de jovens pretos seminus jazem nas ruas do Rio formando um estranho tapete tecido por um racismo estrutural
A manhã do dia 28 de outubro de 2025 abalou o Rio de Janeiro. A operação contra o Comando Vermelho, nos complexos da Penha e do Alemão, surpreendeu a todos pelo grande número de policiais envolvidos, pela repetição dos erros já cometidos em outras operações do gênero e pelo enorme número de vítimas envolvidas. Foram mortos quatro policiais e 117 suspeitos, muitos sem ficha criminal. As circunstâncias das mortes ainda não foram, plenamente, esclarecidas. A contundência da ação e da narrativa política justificadora dessa ação indicam um novo patamar da intervenção violenta realizada pelo Estado.
O Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense, em estudo realizado em 2022, observou que, entre 2007 e 2021, ocorreram quase 18 mil operações policiais que resultaram em 593 chacinas, com um total de 2.374 mortos. O Dicionário de Favelas Marielle Franco nos alerta que chacina se refere ao ato de esquartejar e salgar porcos e, no Rio de Janeiro, seria utilizado para classificar massacres perpetrados contra os moradores das favelas, sobretudo de civis.
Apesar do crescente número de operações policiais e chacinas, após 2014, quando as Unidades de Polícia Pacificadora começaram a ser desarticuladas, as ações criminosas no Rio de Janeiro cresceram e sua tecnologia de organização foi exportada para outros estados da federação. O Comando Vermelho, objeto da operação do dia 28 de outubro, é hoje uma rede horizontal de franquias de ações criminosas assentada em todo Brasil. No período indicado, as milícias, que existiam desde os anos 70, ganham muito mais relevância no controle dos territórios conflagrados e diversificam sua atividade econômica em várias áreas.
O crime organizado que atua no município do Rio é resiliente, é fortemente armado e distribuído em toda cidade, está presente em vários ramos da atividade econômica, é influente na dinâmica política e social das comunidades Estado do Rio de Janeiro, é nacional e articulado internacionalmente do. Sua presença no Centro e nas favelas do município do Rio e em extensas áreas do Estado interfere no cotidiano das pessoas que vivem e trabalham nesses territórios. Os quatro maiores polos de ensino superior e de pesquisa do Estado do Rio de Janeiro estão nas vizinhanças das áreas mais afetadas por essas operações policiais e chacinas. A UFRJ, a Fiocruz, a UERJ e a UFF conhecem de perto a brutalidade ineficaz dessas operações policiais.
Niterói tem sido poupada da violência experimentada pelo município do Rio. A combinação de ações de inteligência de segurança pública com políticas sociais implementadas em territórios vulnerabilizados indicam um caminho possível de mitigação para as áreas conflagradas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Novamente, ações policiais não contavam com inteligência, coordenação nacional, estratégia de continuidade de ações nas áreas afetadas, estratégia de informação para a comunidade sobre como proceder diante da agudização do conflito. Novamente, os territórios foram ocupados de forma brutal, permitindo que o extermínio motivado por interesses diversos fosse realizado. Em vez de informações técnicas, a narrativa de ódio e preconceito, da criminalização dos pobres, de todas as pessoas que vivem nas favelas e dos adversários políticos.
Novamente, para escândalo internacional, corpos de jovens pretos seminus jazem nas ruas do Rio, formando um estranho tapete tecido por um racismo estrutural que privou muitos destes, desde o nascimento, de oportunidades e de direitos.
Qual será o legado dessa operação? Qual será a política de segurança, quais serão as políticas sociais pretendidas para os territórios ocupados pelas facções criminosas e as milícias? O Estado do Rio de Janeiro assumirá uma atitude cooperativa e integrada com o Governo Nacional para enfrentar o crime organizado? Aumentará a sensação de segurança dos que vivem e trabalham no município do Rio, sobretudo dos que residem nas áreas atingidas pela operação? Impedirá que os locais dos massacres sejam novamente tomados pela organização atingida ou facções rivais?
Para quem tem a ciência como escolha de vida e vocação, é patente que a operação realizada foi um exemplo de espetacularização de combate ao crime. Os próximos dias nos trarão mais dados sobre a extensão da violência praticada. As investigações científicas das várias áreas do conhecimento sobre as quais as instituições acadêmicas do Rio se debruçam indicarão a banalidade do mal que acometeu o Estado do Rio e que não virá a produzir, nem mais bem-estar para a população, nem mais paz e segurança para todos.
Nós que atuamos na produção de conhecimento, visando ao compromisso com a melhora das condições de vida de nossa população e com desenvolvimento regional, entendemos que nossas instituições podem contribuir para a construção de uma política de segurança ampla, intersetorial que preserve o direito das pessoas e contribua com uma sociedade mais justa e igualitária. Estaremos juntos e disponíveis para essa construção.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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