Daniel Camargos

Repórter especial na 'Repórter Brasil', venceu diversos prêmios por reportagens, entre eles o Vladimir Herzog. Dirigiu o documentário 'Relatos de um correspondente da guerra na Amazônia' e participou da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.

Daniel Camargos

O cheiro da morte, dez anos depois

Uma década após o rompimento da barragem da Samarco, Minas Gerais segue respirando lama e impunidade

O cheiro da morte, dez anos depois
O cheiro da morte, dez anos depois
Rompimento de barragem no distrito de Bento Rodrigues, zona rural de Mariana, em Minas Gerais. Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
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Poucos dias depois do rompimento da barragem da Samarco, as famílias atingidas pela lama estavam alojadas em pousadas e hotéis de Mariana. A lama havia soterrado grande parte dos distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo.

Emanuelly Vitória, de 5 anos, estava entre as 19 vítimas. Durante uma entrevista no jardim da pousada, o avô da criança arrancava folhas de um limoeiro, amassava e cheirava. Disse que fazia isso para tentar disfarçar o cheiro da morte, ainda impregnado desde o enterro da neta.

Há exatos dez anos, em 5 de novembro de 2015, a barragem de Fundão rompeu e matou 19 pessoas, deixando mais de 600 desabrigadas e 1,2 milhão sem acesso à água potável. O rompimento despejou 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério, contaminando a bacia do rio Doce, provocando um colapso ambiental e atingindo cerca de 50 municípios em Minas Gerais e no Espírito Santo.

Eu era repórter do Estado de Minas e acompanhei em Mariana, por semanas, as buscas e o luto dos familiares. Vi equipes de resgate incansáveis, vi famílias enterrando crianças e presenciei o impacto direto de um desastre que piorou a vida de milhares de pessoas.

Quando entrevistei Pamela Rayane, mãe de Emanuelly, ela relatou a rotina da filha nas vésperas do rompimento e registrou a última lembrança que guardou: o beijo e o abraço antes de a menina sair para a escola.

“A Emanuelly estava ensaiando um teatrinho para a formatura do terceiro período. Eu guardava o dinheiro para pagar a roupinha. Era um vestido rodadinho de bolinha, com anteninha, tudo bonitinho. Não deu tempo de ela me contar se já sabia o que teria que dizer, mas creio que ela decorou as falas, porque era uma menina muito esperta”, disse a mãe.

Maria da Penha tinha 69 anos quando a barragem rompeu. Ela se recuperava de uma fratura no fêmur quando a lama chegou em Bento Rodrigues. Sem conseguir levar a mãe no colo, uma das filhas cogitou morrer abraçada com ela. Foram salvas por um morador que passou de carro, mas, ao ser carregada, Penha se machucou muito.“Ficou cheia de hematomas porque caiu duas vezes no caminho, por causa do desespero da lama chegando”, me disse uma das filhas.

Penha foi de helicóptero para o hospital, mas nunca mais andou. Apesar da saúde fragilizada, seguiu lúcida e lamentava diariamente a saudade dos pés de mexerica e laranja-serra-d’água soterrados pela lama na horta de casa. A dor maior, porém, ela sentia pela perda do Gigante, o cachorro vira-lata de estimação, que foi levado pela lama.

Penha morreu em 2019, antes de ver a nova casa construída no novo Bento Rodrigues. Assim como ela, mais de 60 pessoas morreram antes de serem reassentadas.

A lentidão na reparação foi um dos maiores erros, entre vários outros, da Fundação Renova, criada por Samarco e suas sócias Vale e BHP Billiton, com o aval dos governos federal e estadual, além de órgãos do sistema de Justiça para cuidar da reparação. O reassentamento só foi concluído neste ano, mas ainda sobram reclamações.

A Renova foi extinta em 2024 e um novo acordo prevê 170 bilhões de reais em reparações até 2043, com nova governança sob coordenação pública. A fundação deixou um legado de críticas, principalmente pela morosidade das obras e pela concentração de decisões nas mãos das mineradoras.

A Justiça condenou a Renova a pagar 56 milhões de reais por propaganda ilegal de autopromoção. Essas propagandas, aliás, eram vexaminosas. Veículos de comunicação mineiros – e até nacionais – produziam conteúdo elogioso aos trabalhos da Renova, de forma acrítica e com um discreto, quase imperceptível, selo de que aquilo era patrocinado.

As mesmas emissoras de TV e rádio, os jornais e sites que narraram o luto e a dor foram amenizando as críticas à medida que o dinheiro do “conteúdo patrocinado” começava a cair nas contas.

Estive recentemente em Nova Bento Rodrigues. As ruas são largas e as casas têm bom padrão de acabamento. Mas a reorganização urbana não recompõe o que foi perdido. A comparação com o antigo distrito segue presente no discurso dos atingidos, pois o dinheiro não paga a perda de um modo de vida. 

Tanto que parte dos moradores de Bento Rodrigues manteve o vínculo com o território original. Acompanhei um grupo na primeira noite em que eles decidiram dormir na área mais alta do distrito, não atingida pela lama. Eles se autodenominam “Loucos por Bento Rodrigues” e voltavam periodicamente para rezar na capela que permaneceu de pé e se encontrar em uma das casas que resistiu, mantendo viva a memória do lugar.

Com tantas lições, o desastre de Mariana deveria ter sido um ponto de virada. Mas, em 25 de janeiro de 2019, a Vale repetiu o erro. A barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho, rompeu e matou 272 pessoas.

Naquele janeiro, meu pai estava internado e morreria uma semana depois. Por causa disso, não cobri como repórter o desastre, nem entrevistei os familiares das vítimas.

Contudo, não me esqueço de um vídeo em que Wilson José da Silva, funcionário da Vale, filmado no vestiário da empresa, foi registrado cantando Noites Traiçoeiras: “O mundo pode até te fazer chorar, mas Deus te quer sorrindo”. Ao rever, fico arrepiado e triste novamente.

O corpo de Wilson foi identificado vinte dias depois. O vídeo me tocou especialmente porque a mesma música foi cantada no enterro do meu pai, que se aposentou trabalhando em uma siderúrgica, e foi sepultado dias antes da divulgação do vídeo.

Sou mineiro e passei boa parte da infância em uma cidade de pouco mais de três mil habitantes. Conversar com as famílias atingidas, ouvir suas dores e lembranças sempre me fez sentir como se estivesse sentado à mesa de uma cozinha do interior, ouvindo histórias de familiares.

Por isso, é mais assustador ainda constatar que dez anos depois do rompimento da barragem da Samarco, as investigações sobre o sistema de poder que sustenta a mineração em Minas Gerais expuseram um esquema bilionário de corrupção em licenças ambientais.

Em setembro, a Polícia Federal deflagrou a Operação Rejeito. Com base nos documentos da operação, revelei na Repórter Brasil a rede de relacionamentos entre investigados e figuras da política nacional, como o senador Rodrigo Pacheco (PSD) e o deputado Nikolas Ferreira (PL).

Nesta semana, publiquei outra reportagem mostrando que uma mina ao lado do Córrego do Feijão — onde a barragem da Vale rompeu — voltou a operar sob arrendamento da Itaminas. Moradores da comunidade de Jangada manifestaram temor quanto ao abastecimento de água.

Dias antes, o governador Romeu Zema (Novo) nomeou Edson de Resende para presidir a Feam, órgão responsável por fiscalizar barragens de rejeito e licenças de mineradoras. Resende é promotor aposentado e advogou para três mineradoras, incluindo a Itaminas, no período entre a aposentadoria do Ministério Público e a nomeação.

A escolha alimenta ainda mais a desconfiança dos atingidos em relação à fiscalização. A sensação que fica é que o ciclo se repete: empresas que lucram bilhões, governos que fingem regular e vítimas que perdem a confiança na Justiça.

“De um lado estão Vale, Itaminas, o governo estadual e a prefeitura. Até o Ministério Público, que a gente não considerava do lado deles, parece que também está. Então, é muito injusta a nossa luta, não é?”, questionou a professora Cátia Cruz Souza, moradora da comunidade de Jangada, em Brumadinho.

Dez anos depois, o cheiro da lama permanece. E o gesto do avô de Emanuelly — amassar as folhas de limoeiro para escapar do odor — segue como um placebo, pois em Minas Gerais, o odor da morte não se dissipou nem desapareceu: continua impregnado.

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