Opinião

Rio de Janeiro, a cidade que o poder esqueceu

Que lição podemos tirar de um massacre cometido por um Estado à margem da legalidade?

Rio de Janeiro, a cidade que o poder esqueceu
Rio de Janeiro, a cidade que o poder esqueceu
Moradores dos complexos da Penha e do Alemão e de outras favelas do Rio de Janeiro realizam um protesto na tarde desta sexta-feira 31. Créditos: Tânia Rego / Agência Brasil
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“Os santos não sabem do que são capazes, mas o que os caracteriza é que sabem começar a correr o risco.”
J. P. Le Couedie

A chacina praticada pelo desgovernador do Rio de Janeiro, que resultou no assassinato de 132 pessoas, horrorizou não apenas as duas comunidades atingidas na Cidade Maravilhosa, mas também todas as pessoas com um mínimo de humanidade ao redor do mundo.

A Organização das Nações Unidas (ONU) manifestou repúdio à ação — marcada pela falta de preparo e de inteligência — e solicitou uma investigação independente.

Governadores conservadores, em gesto de cumplicidade, uniram-se à ilegalidade do desgovernador fluminense, formando um verdadeiro consórcio da morte.

Na magnífica exposição do fotógrafo, escritor, músico e cineasta negro Gordon Parks, no Instituto Moreira Salles, em São Paulo, encontra-se um trecho de seu livro A Árvore da Sabedoria. Nele, Parks reproduz um diálogo com a mãe:

“É possível aprender aqui sobre as pessoas e as coisas tanto quanto em qualquer outro lugar. A cidade de Cherokee Flats é como uma árvore frutífera: algumas pessoas são boas, e outras ruins, tal como os frutos de uma árvore… Se você aprende como se aproveitar da bondade e da maldade que seus habitantes fazem uns aos outros, você aprenderá um bocado sobre a vida. Algum dia, esse aprendizado te tornará um homem melhor… Não importa aonde vá ou faça morada… pense em Cherokee Flats até o dia de sua morte — que ela seja sua árvore do conhecimento.”

Nesse sentido, cabe pensar: que lição podemos tirar de um massacre cometido por um Estado à margem da legalidade?

Para isso, é necessário ir às raízes da questão social no Rio de Janeiro.

Por que o Rio foi tão abandonado? O que mudou com a transferência da capital federal para Brasília, em 1960?

A mudança foi desastrosa, sobretudo porque, logo em seguida, veio o golpe de 1964.

Como os militares entendiam de economia e urbanismo tanto quanto eu de futebol, a cidade foi deixada praticamente à deriva — ainda que permanecesse como a maior praça militar do País. E todos sabemos: a produção militar é limitada, sobretudo sob um regime ditatorial.

Um exemplo recente pode ser lembrado: quando a Alemanha se reunificou e transferiu de volta sua capital para Berlim, buscou compensar Bonn, a antiga capital, levando para lá sedes de organismos internacionais do Sistema das Nações Unidas, como os responsáveis pelo Clima e pelo Voluntariado.

Vale notar que, comparada ao Rio, Bonn não passaria de um bairro da capital fluminense.

Ter deixado no Rio sedes da Petrobras, do BNDES, da Ancine e de outros órgãos não seria suficiente — ainda mais com a privataria de Fernando Henrique Cardoso, que vendeu, na bacia das almas, a Companhia Siderúrgica Nacional e a Vale do Rio Doce.

Pior: Collor liquidou a empresa de navegação da Petrobras, e FHC, a Docenave.

Mais recentemente, Bolsonaro entregou a BR Distribuidora e a Liquigás — todas sediadas no Rio de Janeiro.

Dessa forma, como não se teria chegado ao caos atual?

Nada disso foi acaso. Foi projeto. Um projeto com ramificações neocoloniais, que têm nos Estados Unidos o suserano, e, nos vassalos governos da Argentina e do Paraguai, os cúmplices.

Estes, oportunisticamente, declararam organizações narcoterroristas o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho.

Cabe perguntar: por que o atual governo federal não assume essa dívida histórica da nação com o Rio de Janeiro?

Por que não substituir a proposta bukeliana — inspirada no presidente autoritário de El Salvador, que acredita resolver tudo com repressão e encarceramento — por um projeto coletivo de salvação do Rio, em que todas as unidades da federação se sintam envolvidas, responsáveis e solidárias?

Não seria esse o papel do governo federal?

Se parece irrealizável, recorro à sabedoria da escritora Adélia Prado, que, como a mãe de Gordon Parks, foi capaz de perceber a universalidade do mundo em sua comunidade:

“Para o desejo do meu coração, o mar é uma gota.”

Isso me lembra minha mãe, que gostava de boleros e os cantava.
Só recentemente compreendi a sabedoria de gostar de músicas que falam de amor: ao ouvi-las, não se consegue deixar passar 24 horas sem buscar reconciliação — e, na maioria das vezes, ela era mais do que devida.

O amor impõe outro entendimento da vida — como a senhora Parks percebeu em sua pequena comunidade, como Adélia Prado viu em sua Minas Gerais, e como minha mãe viveu no interior de São Paulo.

Em Poder (Editora Vozes), Anselm Grün cita o teólogo Karl Rahner:

“O poder nos cega, porque, quando ele nos deixa embriagados, nós não conseguimos ver como a realidade realmente é.”

Grün complementa:

“Hoje em dia, o poder também é abusado dessa forma: eu preciso subjugar os outros para que eu possa dominar sozinho.”

E pondera:

“Aquele que detém poder tem a tarefa de efetuar algo nas pessoas, de servir a elas nesse sentido — não de dominá-las, mas de despertar nelas a vida. Não de um poder que oprime e subjuga cada vez mais, mas de um poder que puxa as pessoas para cima e as levanta.”

Busquemos, portanto, outros olhares sobre a cidadania, a nacionalidade e as relações interpessoais — inclusive as internacionais.

Talvez aí resida o verdadeiro aprendizado: a coragem de correr o risco de ser humano.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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