Roberto Amaral

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Cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente do PSB. Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle)

Opinião

Dependente e ocupado ideologicamente, o Brasil resiste

O fato de havermos vencido a tentativa de golpe e sustentado, até aqui, um governo que serve de contenção ao fascismo indica ganhos que devem ser festejados

Dependente e ocupado ideologicamente, o Brasil resiste
Dependente e ocupado ideologicamente, o Brasil resiste
Lula em coletiva de imprensa na Malásia. Foto: ARIF KARTONO / AFP
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“Onde o poder público descuidou da integridade física dos mais pobres, o regime democrático não passa de uma fachada de papelão esburacada por tiros, chamuscada por pólvora queimada e borrifada de sangue” — Eugênio Bucci, O Estado de SP, 30/10/2025

Nascemos como mera feitoria, ponto de apoio para naus sedentas de água, remanso de piratas e aventureiros. Na Colônia, sem povo, nosso destino foi traçado como economia primário-exportadora fundada na escravidão de negros e indígenas, a serviço das demandas do consumo europeu, via Lisboa — a metrópole decadente, salvando-se como entreposto de nosso comércio: pau-brasil, açúcar, minérios, algodão, carne, café… — que exportávamos, e de entrada do que necessitávamos, que era quase tudo.

Essa economia e esse comércio estabeleciam as bases da aliança do latifúndio e da incipiente burguesia comercial (que incluía os comerciantes, os traficantes de gente e os contrabandistas, de um modo geral) com a Coroa portuguesa e seus primeiros agentes — exatores do fisco, militares e o clero. Eram as raízes de uma estranha nação sem povo e, assim, sem projeto.

No Império, exportávamos mão de obra escrava (sob a forma de açúcar, minérios etc.) e tudo importávamos, como reclamava Joaquim Nabuco ainda no Segundo Reinado:

“[…] o Brasil é uma nação que importa tudo: a carne-seca e o milho do Rio da Prata, o arroz da Índia, o bacalhau da Noruega, o azeite de Portugal, o trigo de Baltimore, a manteiga da França, as velas da Alemanha, os tecidos de Manchester, e tudo o mais, exceto exclusivamente os gêneros de imediata deterioração. A importação representa assim as necessidades materiais da população toda, ao passo que a exportação representa, como já vimos, o trabalho apenas de uma classe.” (Discurso no Senado, 1884)

Esqueceu-se de dizer que importávamos também ideologia.

Sobre a mão de obra escrava se estabeleciam a economia e a política do Império, quando — é ainda a voz de Nabuco — “o espírito comercial e industrial do país parecia resumir-se na importação e na venda de africanos”, prenunciando o atraso relativo que se acentuaria nos dois séculos imediatos.

A preeminência dos interesses agrários, conservadores do statu quo, sobre o desenvolvimento das demais forças produtivas — o comércio e a indústria — sobreviverá na Primeira República: um longo pacto que assegurará os interesses da lavoura.

No nascimento da República, o Brasil era ainda uma feitoria colonial. Rui Barbosa, seu primeiro ministro da Fazenda, atualizaria as palavras do grande tribuno do Segundo Império:

“Sem indústrias manufatureiras, [o Brasil] é exportador só de produtos da lavoura e matérias-primas, que recebe depois, em produtos fabricados, pelo duplo do seu valor. É exportador de moeda, não só porque tem de pagar juros da grande dívida externa e de capitais estrangeiros empregados aqui, como também porque supre as grandes despesas dos nossos compatriotas que vivem na Europa, ou por lá passeiam exibindo sua ociosidade, nenhuma compensação nos vindo desses fatos, porque os estrangeiros não procuram o Brasil para consumir suas rendas; ao contrário, por dolorosa experiência sabemos quanto nos custa o seu capital empregado aqui.” (Relatório de 1891)

No século XX, exportávamos mão de obra sobre-explorada na forma de commodities. No século XXI, ainda economia periférica, prosseguimos no mesmo destino e na mesma dependência, cumprindo o papel de supridores do centro hegemônico com alimentos (que faltam à mesa de nosso povo), minérios in natura e commodities, e importadores de tecnologia, ciência e conhecimento — além de ideologia.

Nossa classe dominante, colonizada, reproduz os valores e os interesses do colonizador. Exportamos minério de ferro e importamos lingotes. Exportamos soja e proteína animal, enquanto importamos valores, hábitos e tecnologia.

A modernização se dá naqueles setores necessários à produção de matérias-primas de baixo custo para o consumo dos países desenvolvidos — o motor da expansão do agronegócio, que alimenta o PIB com divisas, ao preço da devastação ambiental e do despovoamento do campo.

A dependência ao capital estrangeiro não é, pois, um acaso. A crise, como lembrava Darcy Ribeiro, é um projeto.

Em que implica uma economia voltada para fora? O comerciante, o latifundiário, o senhor de engenho no Nordeste e os traficantes de escravos e mercadorias, os mineradores de Minas Gerais e do Centro-oeste e os grandes estancieiros do Sul não careciam de um país rico para desenvolver seus negócios; não careciam de mercado interno para o consumo de seus produtos. Essa elite — ou essa classe dominante — estava, nestes termos, desvinculada dos destinos do País e de seu povo, os pobres e os não brancos, com os quais jamais se identificou.

Qual seria a classe dominante produzida por essa economia? Meia dúzia de latifundiários, uns poucos comerciantes exportadores/importadores, uma sociedade sem povo e uma classe dominante dependente dos negociantes do mercado internacional, que ditavam o que comprar, como comprar e a que preço comprar.

Preocupava-a, então, a movimentação da bolsa de mercadorias de Londres — como hoje se volta para os indicadores de Wall Street, as políticas do FED e os humores da Faria Lima. Economia voltada para fora não precisa cuidar da formação de mercado interno; daí sempre desinteressar-se pelo desenvolvimento nacional, fazer vistas grossas para a miséria e as desigualdades sociais.

Esse é o caráter da casa-grande que chega aos nossos dias descomprometida com o destino do País — ou seja, sem identidade a perseguir. Não havia no passado, e não há no presente, por que pensar ou cuidar de um projeto nacional. E não há ainda a consciência de povo, uma comunidade imaginária unificada por um coletivo de valores comuns. Há, sim, população: um coletivo disperso pela desigualdade social.

Ainda hoje, o País se move não para prover às necessidades de seu povo, mas para manter o enriquecimento da minoria dominante — seja o senhor de engenho do século XVI, sejam os rentistas do sistema financeiro — ontem como hoje, de costas para as necessidades nacionais e a serviço de interesses que não são os nossos.

Na Colônia e no Império era o mercado externo quem decidia o que deveríamos importar e o que deveríamos ou poderíamos produzir. Na contemporaneidade, os países da periferia do capitalismo — nosso caso — estão submetidos à lógica da economia globalizada. O Estado dependente cede o poder de regular sua própria economia.

Refletindo sobre a sociedade capitalista de nossos dias, Celso Furtado observa:

“As decisões sobre o que importar e o que produzir localmente, onde completar o processo produtivo, a que mercados internos e externos se dirigir, são tomadas no âmbito da empresa [transnacional], que tem sua própria balança de pagamentos externos e se financia onde melhor lhe convém.”

Para o autor de Formação econômica do Brasil, a subordinação do crescimento econômico à iniciativa das grandes empresas multinacionais, em países ainda em formação, como o Brasil, é a boa receita para a inviabilização de um projeto de país — e a boa explicação para os bolsões de miséria em que tentam viver milhões de brasileiros, acossados pelo desarranjo social, o crime organizado e a violência do Estado.

Não há, portanto, qualquer surpresa em que o Brasil, sendo uma das dez maiores potências econômicas do mundo, seja também uma das campeãs em desigualdade social. Em 2024, o índice de Gini medido pelo IBGE ficou em 0,506 (a escala de Gini varia de 0 a 1; quanto mais perto de 0, menos desigual é o país). Há razões de surpresa para a tragédia social?

A dependência política e econômica, a renúncia a um projeto próprio de soberania e desenvolvimento, foi — e é, ainda — a opção da classe dominante brasileira, desde os primeiros momentos de construção do País, engenho político-administrativo que antecedeu a Nação.

Furtado apresenta a disjuntiva: a) saber se temos um futuro como nação que conta na construção do devir humano, ou b) se prevalecerão as forças que se empenham em interromper nosso processo histórico de formação de um Estado-nação.

Até aqui, as forças do atraso é que têm prevalecido — e nada está a indicar sua próxima derrogação.

Nossa classe dominante é herdeira legítima do País-colônia: supostamente branca, refratária à miscigenação, reacionária, beneficiária do statu quo, de que dependem seus privilégios e o mando, que se expressa sobre todas as formas possíveis — a miséria, a segregação, a violência estatal —, que se abate preferentemente nas periferias das grandes cidades, onde os pobres mais pobres tentam sobreviver.

Por isso, a classe dominante não se confunde nem com os interesses do povo nem com os do País, e reage negativamente a qualquer sinal de reforma — principalmente daquelas que possam alterar o estatuto da propriedade, base do mando que é o mesmo da Colônia à República dos nossos dias, de um país que, em pleno terceiro milênio, ainda trata a reforma agrária como tabu.

Produtor de devastação ambiental, concentração fundiária e expulsão do camponês de seu habitat, além de pressão inflacionária e commodities que não enchem barriga de gente, o agronegócio é a grande vedete dos nossos dias. Anúncios veiculados insistentemente na maior rede de televisão do País enaltecem o modelo predatório: “Agro é pop, agro é tech, agro é tudo”. Por volta dos anos 1950, cerca de 80% da nossa pauta de exportações e do ingresso de dólares derivavam das vendas de café para o exterior; hoje, quando o Brasil parecia haver alcançado o estágio da industrialização, cerca de 60% dependem do agronegócio.

Nos anos 1940/1950, nossa atrasada classe dominante ainda discutia a díade agricultura–industrialização. Eugênio Gudin, ícone do pensamento conservador, certamente o mais influente economista brasileiro do século XX, delegado brasileiro à Conferência Monetária Internacional de Bretton Woods (1944), ministro da Fazenda de Café Filho (1954–1955), criticava a industrialização e defendia o que denominava “vocação agrícola” do País.

Não é de estranhar a destruição da indústria manufatureira, levada a cabo pelo neoliberalismo. A participação da indústria no PIB nacional, que já foi de 35,8% em 1984, caiu para os atuais 13%, quando essa participação chega a 43,1% na China, 30,4% na Coreia do Sul e, para citar um país da Europa desenvolvida, chega a 20,8% na Alemanha (dados da ONU para 2021).

O passado não é só herança; ajuda a explicar o presente, mas não o determina, pois a história é um processo vivo — uma construção humana. Já sabemos o que devemos evitar e sabemos o que devemos fazer.

E, nada obstante tantos fracassos, há registros de conquistas, como a resistência do processo democrático burguês, resistência tão mais significativa quanto mais ameaçador é o avanço, entre nós, do projeto da extrema-direita. O fato de havermos vencido a tentativa de golpe de Estado de janeiro de 2023 e sustentado até aqui um governo inspirado por princípios social-democratas, que serve de contenção ao avanço do fascismo, indica ganhos que devem ser festejados pelo povo brasileiro.

***

Mais uma chacina — Comandado há muito pelo reacionarismo mais tosco, sem política de segurança pública digna de qualquer consideração, o Rio de Janeiro amanheceu de luto na última terça-feira 28, após catastrófica operação policial nos complexos proletários do Alemão e da Penha, na capital, deixar mais de 130 mortos — muitos deles com claros sinais de execução, alguns degolados. E o massacre ainda está por ser apurado. É a maior chacina de uma história de chacinas recorrentes. Um Carandiru a céu aberto.

Mais uma chacina II Na velha imprensa, comentaristas aplaudem a operação como “bem-sucedida e necessária”, embora os mais empertigados disfarcem a euforia, ressalvando que a brutalidade policial (planejada, e sabidamente inútil como tática de repressão ao crime organizado) “talvez tenha sido excessiva”. Entre o desamparo e a atração pelo fascismo, parte da população — exatamente aquela mais exposta à violência — aplaude o morticínio e vê com bons olhos a conversão de policiais em bestas-feras, dispostos a agir com o máximo de letalidade e o mínimo de inteligência. E, dentre estes, boa parte não se percebe, ainda, como vítima potencial de uma política assassina.

Mais uma chacina III — O horror atiça o campo da direita, desorientado em face dos sinais — tímidos embora — de avanço social, e que, afora a violência, nada tem a oferecer ao País. Governadores esboçam uma frente neofascista, na esperança de levar uma população amedrontada às urnas em 2026. Há os que insuflam a retórica do “narcoterrorismo”, ansiosos por uma intervenção estrangeira no Brasil (o exemplo de Nayib Bukele, que transformou El Salvador num grande presídio privado internacional a céu aberto, os faz sonhar). É, sem dúvida, um momento desafiador para as forças progressistas, que precisam ofertar à sociedade uma política sensata de segurança pública — a PEC que tramita no Congresso pode ser um primeiro passo, bem como a ADPF das Favelas (mas, sempre, apenas um primeiro passo). Do luto e da indignação surge uma oportunidade para apresentarmos um outro projeto de país, um outro modelo civilizatório. Precisamos, antes de tudo, saber de que lado estamos — e repelir a barbárie.

O chefão ainda impune — O deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) foi preciso na denúncia: o bandido mais perigoso do estado do Rio de Janeiro está solto, dando entrevistas e despachando no Palácio Guanabara. Acumula uma extensa ficha corrida, repleta de crimes covardes e brutais, e com ela espera se cacifar para novos mandatos. A carnificina produzida nesta semana desperta na cidadania uma dúvida que reflete nossos tempos: a que facção criminosa o governador terá buscado beneficiar, ao atacar redutos do Comando Vermelho, impondo um revés pontual a essa organização? Dada a deletéria situação do comando político do estado, uma autópsia independente dos cadáveres recolhidos pelos moradores (abandonados pelo poder público) é uma exigência inegociável.

(Com a colaboração de Pedro Amaral)

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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