Economia

assine e leia

A conta-gotas

Os juros finalmente começarão a cair, mas a redução será em doses homeopáticas, preveem economistas

A conta-gotas
A conta-gotas
O preço dos alimentos tem impacto direto na aprovação do governo – Imagem: iStockphoto
Apoie Siga-nos no

Lula voltou a criticar os juros altos, após meses de silêncio sobre o tema, enquanto o presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, mantém o pé no freio por receio de uma escalada nos preços. Na terça-feira 21, durante o lançamento do programa Reforma Casa Brasil, o presidente cobrou a redução da Selic. No mesmo dia, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que a taxa está “restritiva demais”. Em evento na Indonésia, durante a recente viagem da comitiva presidencial à Ásia, ­Galípolo declarou estar “bastante incomodado” com a inflação fora da meta.

O problema é que uma questão está ligada à outra. Com a enxurrada de dólares trazida pelo carry trade, investimentos estrangeiros atraídos pelos juros altos, a inflação dos alimentos, fortemente influenciada pelo câmbio, tem ajudado a conter o Índice Geral de Preços. Segundo o BC, 61% dos custos da produção agropecuária estão atrelados ao dólar, e uma desvalorização de 10% do real eleva a inflação de alimentos em 1,4 ponto porcentual.

O IPCA–15, prévia da inflação, desacelerou para 0,18% em outubro, abaixo dos 0,25% esperados, puxado pela quinta queda consecutiva no preço dos alimentos. Na semana passada, a aprovação de Lula alcançou 51,2%, o maior nível em quase dois anos, segundo pesquisa AtlasIntel. Levantamentos anteriores indicam que índices menores de aprovação coincidiram com períodos de elevação da inflação dos alimentos.

Lula e Haddad certamente conhecem a correlação entre juros altos, dólar contido, preços dos alimentos baixos e freio na inflação geral. Por isso, não se descarta que suas declarações tenham, sobretudo, finalidade política, mirando 2026. Economistas indicam que a Selic deve cair no primeiro trimestre do próximo ano, mas permanecerá elevada, já que a questão fiscal ainda não foi resolvida – um problema que tende a agravar-se em 2027.

“Em última instância, o desafio está nas projeções do desempenho fiscal. Além do abacaxi para descascar no ano que vem, o problema é a partir de 2027. O próprio Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias deixou claro, no primeiro semestre, que a Fazenda enxerga uma dificuldade para fechar a meta, qualquer que ela seja, a partir deste ano”, afirma José Francisco de Lima Gonçalves, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP. “Enquanto isso não estiver minimamente encaminhado, a desancoragem persiste. Ela permite alguma redução da Selic, mas ainda em patamar contracionista.” Expectativas desancoradas, cabe acrescentar, significam inflação futura acima da meta estabelecida, de 3%.

A melhora da inflação corrente e das taxas implícitas, junto aos sinais de desaceleração da economia, indica a possibilidade de queda da Selic no primeiro trimestre. Não há, porém, razão para o presidente do BC antecipar esse sinal antes do mercado. É uma questão de estratégia, observa Gonçalves. A desconfiança em relação a Galípolo some e reaparece, lembram que ele é amigo de Lula. Por isso, um sinal mais claro do Focus ou da curva de juros, no sentido da redução da Selic, não deve ocorrer até o fim do ano.

Agora, a taxa está “restritiva demais”, queixa-se Haddad, ao ecoar as críticas do presidente Lula

A cada mês que a Selic se mantém, aproxima-se o chamado “horizonte relevante”, período futuro em que decisões econômicas terão efeito mais significativo. Se a inflação continua caindo, observa o economista, há mais conforto nas projeções, e isso se reflete no mercado à medida que o BC sinaliza compromisso. “Acho que é isso que Haddad e Lula incluem, de certa forma, em suas declarações. Eles não podem dizer que a taxa está certa, assim como ­Galípolo não pode afirmar que está errada.”

No mercado, quase ninguém acredita que o gasto do governo não vá crescer em termos reais. Trata-se de uma situação com a qual é preciso conviver. “O ambiente político melhorou muito para Lula e, até o fim do ano, pode surgir espaço mais confortável para ele e Haddad tratarem do assunto, sem precisar prestar contas ao partido sobre os juros”, observa Gonçalves. “Esse seria um cenário interessante, porque empurraria para janeiro qualquer avaliação da tensão entre a Fazenda e o BC. Mas isso exige sintonia fina.”

Segundo o economista Saulo ­Abouchedid, professor da Facamp, o governo enfrenta uma armadilha na meta de inflação de 3%, que impõe restrições à política monetária e aumenta a pressão do mercado. “É uma meta discutível e parece existir um tabu sobre a sua pertinência”, observa. Historicamente difícil de atingir devido às características da economia brasileira, ela carrega um viés recessivo. “Na discussão macroeconômica, a austeridade sempre rondará não pelo regime de metas, mas pela meta específica imposta. É urgente revisá-la.” Ele prevê que a Selic deve começar a cair a partir de março de 2026, segundo as atas do Copom.

A inflação de alimentos e serviços, embora relevante para o IPCA, está sob controle, e hoje é difícil alegar que os alimentos pressionam as previsões do índice. Pode haver impactos de variações de preços das commodities, fatores climáticos, mas não há uma justificativa para manter a Selic­ num patamar elevado, nem do ponto de vista político nem do econômico. Quanto à inflação de serviços, usada como justificativa pelo BC, Abouchedid observa estabilização da atividade econômica. “Não vejo a inflação de serviços como fator de pressão sobre a inflação futura.”

Alguns economistas apontam outra armadilha criada pelo próprio governo: o regime fiscal. As regras tornaram-se instrumento de pressão nas mãos do mercado. Reduzir os juros pode elevar a inflação de serviços e enfraquecer o câmbio, que hoje ajuda a controlar os preços no curto prazo. Manter a Selic alta, por outro lado, desagrada a uma parte da população e pode aprofundar a desaceleração econômica, caso a taxa elevada persista. •

Publicado na edição n° 1386 de CartaCapital, em 05 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A conta-gotas’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo