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O tradutor de juridiquês

Ferramenta de Inteligência Artificial facilita a consulta a processos e decifra a CLT para os trabalhadores

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CLT. A legislação trabalhista ainda gera muitas dúvidas, tanto para funcionários quanto para pequenos empregadores – Imagem: Arquivo/ANAMATRA
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Entender a própria rescisão de trabalho pode exigir quase o mesmo esforço que ­assiná-la. Termos técnicos, prazos pouco claros e verbas de nomes difíceis fazem com que muitos trabalhadores se sintam diante de um idioma estranho. Foi dessa dificuldade que surgiu o Getúlio AI, uma plataforma gratuita de Inteligência Artificial criada para facilitar a consulta a processos e tornar o Direito do Trabalho mais compreensível aos trabalhadores.

Lançada em outubro de 2023, a ferramenta responde dúvidas sobre rescisões, férias, FGTS, adicionais e seguro-desemprego. Também calcula indenizações, valores e movimentações judiciais, tudo com base em dados públicos e revisão de advogados. A proposta é traduzir o “juridiquês” e devolver ao trabalhador o poder de entender seus próprios direitos.

“O objetivo sempre foi democratizar o acesso à informação jurídica, sem substituir o advogado. Oferecemos um ponto de partida confiável para quem precisa entender o que a lei prevê”, explica Arthur Bouzas, idealizador do projeto. O desenvolvedor conta que a ideia nasceu a partir da observação da falta de acesso a informações básicas sobre ações trabalhistas. “Muitos trabalhadores nem sequer sabem o número do próprio processo.”

A equipe começou a desenvolver o sistema a partir dessa lacuna. O Getúlio AI reúne uma base de dados construída internamente, revisada por advogados e alimentada pelas dúvidas mais frequentes de quem vive a realidade do trabalho. A Inteligência Artificial não busca respostas fora do sistema, mas reorganiza as informações validadas, ­entregando-as de forma simples. “O objetivo é traduzir, não interpretar. Ela transforma o conteúdo­ técnico em algo que qualquer cidadão possa compreender”, diz Bouzas.

Desde o lançamento, a plataforma já trocou mais de 120 mil mensagens com usuários e realizou 51 mil consultas de processos trabalhistas. Também registrou 4 mil consultas de CNPJ, permitindo que o trabalhador verifique se a empresa para a qual trabalha responde a ações na Justiça e em quais tribunais. Nenhuma dessas interações exige cadastro. O sistema não coleta nem compartilha dados pessoais. “As conversas ficam restritas ao usuário”, reforça o criador.

Os dados de uso também revelam um retrato preciso das dúvidas que mais afetam os brasileiros no mercado de trabalho. A maior parte das perguntas, em torno de 22%, está relacionada a contratos encerrados antes do prazo previsto, quando o trabalhador tenta entender se tem direito a indenização, aviso prévio proporcional ou outras verbas rescisórias. Em seguida, aparecem temas como adicional de insalubridade e adicional noturno (15%), além de consultas sobre andamento de processos (14%). Há ainda dúvidas sobre atrasos salariais e descontos indevidos (9%), férias e feriados (8%), direitos após demissão (7%) e atestados médicos (7%).

Esses números, segundo Bouzas, revelam o quanto a desinformação pesa sobre o trabalhador comum. “O que a gente percebe é que existe uma enorme carência de orientação. Muitos não sabem nem por onde começar, e acabam recorrendo a informações incompletas ou erradas”, explicou.

O projeto também atrai, ainda que em menor número, pequenos empregadores que buscam tirar dúvidas sobre obrigações legais. “Já tivemos casos de contratantes que perguntam se podem pedir ao funcionário para ficar meia hora a mais, ou se o banco de horas precisa ser formalizado. O sistema responde com base na CLT, sem viés, do mesmo modo que faria para o trabalhador.”

“O objetivo sempre foi democratizar o acesso à informação jurídica, mas sem substituir o advogado”, diz Arthur Bouzas, o idealizador

O desenvolvimento da ferramenta exigiu um cuidado técnico de manter a base sempre atualizada diante das constantes mudanças legais. Por isso, a equipe optou por trabalhar com um conjunto fixo de dados revisados e usar a IA apenas para reescrever e contextualizar o conteúdo. A consulta de processos é feita a partir de sistemas de jurimetria – como Data ­Lawyer, Escavador e Deep Legal – que cruzam informações de tribunais e tornam públicos dados antes dispersos. Casos sob sigilo de Justiça não ficam disponíveis.

O modelo de operação garante que o acesso continue gratuito. A ferramenta é financiada por uma empresa parceira, a Trabalhista Cred, que atua no segmento de cessão de créditos judiciais. Quando o usuário manifesta interesse em vender seu crédito de um processo, é encaminhado para a parceira. “Mas isso só acontece mediante consentimento. O Getúlio AI não repassa nenhum dado sem autorização”, diz Bouzas. Fora desses casos, as consultas são totalmente anônimas.

Com pouco mais de um ano no ar, a plataforma segue em expansão. Além das consultas de processos e das calculadoras de FGTS, 13º e seguro-desemprego, o sistema agora inclui gráficos sobre o histórico processual das empresas e um painel que reúne estatísticas em tempo real­. Uma nova função, ainda em fase beta, permite consultar processos vinculados ao CPF, como causas cíveis ou de família, ampliando o alcance da ferramenta. “A meta é manter o Getúlio AI como um espaço de informação gratuita, sem assinatura e sem barreiras de uso”, destaca.

Os resultados têm confirmado o interesse do público. No início, menos de 5% dos acessos vinham de tráfego orgânico – ou seja, usuários que descobriam o ­site por conta própria. Hoje, essa taxa está próxima de 30%, sinal de que muitos retornam espontaneamente. “Quando o cidadão percebe que recebeu uma resposta que faz sentido para o caso dele, ele volta. Isso mostra que estamos entregando algo de valor”, observa.

O avanço do Getúlio AI ocorre em meio à transformação digital da Justiça. A informatização do sistema judicial brasileiro cresceu, mas ainda permanece distante da maioria da população. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, há mais de 77 milhões de processos em tramitação no País, e boa parte deles envolve relações de trabalho. “A tecnologia pode reduzir essa distância, desde que usada de forma ética e responsável”, finalizou Bouzas. •

Publicado na edição n° 1386 de CartaCapital, em 05 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O tradutor de juridiquês’

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