Economia
Oportunidade rara
No centro de disputa geopolítica, o País precisa converter sua abundância em independência produtiva
 
         
        O Brasil vive um momento raro, no duplo sentido da palavra. O subsolo guarda riquezas que o mundo inteiro disputa, mas o País ainda hesita sobre o que fazer com elas. Com vastas reservas de lítio, nióbio, terras-raras, grafite, cobre e outros minerais críticos para tecnologias limpas, veículos elétricos e semicondutores, o Brasil pode ocupar um papel central na nova geopolítica da energia. A questão é se terá um projeto nacional capaz de transformar essa abundância em desenvolvimento, não em nova dependência.
O Projeto de Lei nº 2780/2024, que propõe a criação da Política Nacional de Minerais Críticos e Estratégicos (PNMCE), surge como tentativa de preencher essa lacuna. A proposta, de autoria do deputado Zé Silva (Solidariedade), define diretrizes para estimular a pesquisa, a exploração e a industrialização de minerais essenciais à transição energética. Pretende ampliar a produção, atrair investimentos e fortalecer a cadeia produtiva nacional. Mais que um plano econômico, trata-se de uma questão de soberania. China, EUA e União Europeia já criaram legislações específicas para proteger seus suprimentos minerais. Pequim domina mais de 80% da produção e do refino de terras-raras, o que lhe confere poder geopolítico sobre setores de energia, defesa e tecnologia. O Brasil, dono de grandes reservas subexploradas, pode seguir outro caminho: o da autonomia tecnológica e industrial.
O PL teve seu regime de urgência aprovado pela Câmara dos Deputados e agora é debatido por uma comissão especial. Outras propostas foram apensadas, ampliando o debate sobre o papel do Estado, o incentivo à indústria nacional e os limites da atuação estrangeira. Há iniciativas que propõem a obrigatoriedade de beneficiamento e industrialização em território brasileiro, buscando impedir a exportação de minério bruto. Outras defendem a criação de uma empresa pública, a EBMinerais, e de um fundo para financiar cadeias produtivas. Há ainda projetos que instituem centros de excelência e redes de pesquisa para formar profissionais, além de sistemas de rastreabilidade que garantam a origem legal e ambientalmente responsável dos recursos.
Além do PL 2780, tramitam no Congresso outras propostas complementares, como o PL 4051/2023, que cria a Política Nacional de Mineração Sustentável e propõe mecanismos de controle ambiental mais rigorosos, e o PL 3085/2023, que estabelece normas de rastreabilidade digital para minerais estratégicos. Há ainda o PL 1373/2024, que sugere um fundo nacional de compensação destinado às regiões impactadas pela mineração. Em conjunto, esses textos apontam para um novo paradigma legislativo, no qual o Estado volta a planejar e coordenar, em vez de apenas reagir às dinâmicas de mercado.
Essa pluralidade de propostas reflete a maturidade do debate e o reconhecimento de que o setor mineral não pode continuar orientado apenas pelo mercado. É preciso uma política de Estado que combine inovação tecnológica, proteção ambiental e justiça social. A mineração brasileira, historicamente marcada por tragédias e por uma lógica de enclave, precisa ser reinventada se quiser tornar-se vetor de futuro.
As terras-raras simbolizam esse dilema. Apesar do nome, não são tão raras na crosta terrestre, mas sua extração é complexa, cara e poluente. O Brasil tem potencial expressivo no norte de Minas Gerais, na Bahia e em Roraima, onde o Complexo Barreira pode abrigar uma das maiores reservas do planeta. Mas o País ainda carece de tecnologia própria e de regulação ambiental eficiente. A exploração desses minerais, se conduzida de forma predatória, repetirá o velho roteiro da abundância desperdiçada. Se planejada com rigor científico e participação social, pode ser o primeiro passo de uma nova política industrial verde.
A governança mineral é outro ponto central. Falta ao Brasil um sistema integrado de informações públicas sobre licenças, contratos e impactos socioambientais. A ausência de transparência alimenta desigualdades, fragiliza a fiscalização e favorece práticas ilegais. É fundamental construir um modelo de regulação que associe controle público, inovação e eficiência. A digitalização dos processos, a rastreabilidade em tempo real e a abertura de dados podem transformar a mineração em um setor exemplar de gestão moderna.
Ainda falta uma política de Estado que una inovação, sustentabilidade e justiça social
Nenhum país se desenvolveu deixando suas riquezas à mercê do acaso. A Coreia do Sul, o Canadá e a Austrália criaram fundos soberanos e agências de pesquisa para garantir que seus recursos naturais financiem inovação e indústria. O Brasil precisa fazer o mesmo. A criação de centros de pesquisa, mecanismos de rastreabilidade e critérios ambientais robustos pode transformar o PL 2780/2024 num marco moderno e responsável.
O desafio vai além da legislação. É necessário estabelecer um pacto político capaz de conciliar crescimento, ciência e sustentabilidade. A transição energética não pode reproduzir o velho extrativismo de exportar riquezas e importar tecnologia. É hora de investir em laboratórios, fábricas de componentes e formação de engenheiros. Soberania mineral significa agregar valor, gerar conhecimento e proteger o território, não apenas aumentar exportações.
A América Latina vive dilemas semelhantes. O chamado “triângulo do lítio”, formado por Chile, Argentina e Bolívia, busca coordenar políticas comuns para não ser mero fornecedor de insumos às potências industriais. O Brasil, se atuar com visão regional, pode liderar essa agenda e articular uma diplomacia mineral sul-americana, criando cadeias produtivas sustentáveis e menos vulneráveis às oscilações do mercado global.
O subsolo brasileiro guarda riquezas decisivas para o século XXI. Transformá-las em prosperidade exigirá planejamento, transparência e coragem política. O debate em curso no Congresso representa uma oportunidade rara – talvez única – de construir uma política pública que una soberania, inovação e responsabilidade ambiental. Que essa chance não se perca no labirinto da burocracia nem no pragmatismo de curto prazo. O mundo vive uma nova corrida por minerais estratégicos, e a diferença entre os que avançam e os que ficam para trás dependerá de algo além das reservas geológicas: da capacidade de planejar, cooperar e inovar. Se o Brasil conseguir alinhar ciência, política e propósito, poderá transformar suas terras-raras em oportunidades igualmente raras de desenvolvimento. •
*Ph.D. em Ciências Sociais pela Universidade Fernando Pessoa, em Portugal, e doutorando em Finanças pela Fundação Getulio Vargas, é managing-director da Taleb Capital Hedge Fund (Nova York). Analisa geopolítica e tecnologias disruptivas.
Publicado na edição n° 1386 de CartaCapital, em 05 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Oportunidade rara’
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