Cultura
A louvação do agro
Pesquisadores buscam entender as relações concretas entre o agronegócio e o novo subgênero do universo sertanejo
 
         
        A letra da canção Os Menino da Pecuária, dos paranaenses Léo e Raphael, diz: Não é à toa que o PIB começa com ‘p’ de pecuária. O videoclipe da música, que tem mais de 132 milhões de visualizações no YouTube, foi filmado em uma fazenda de gado, tem merchandising de uma picape e, no meio, apresenta, por meio de uma legenda, a seguinte informação: “Em 2020, o campo movimentou mais de 990 bilhões de reais”.
Outras canções de Léo e Raphael têm títulos bem sugestivos do espírito do gênero: Pecuária 2.0, É os Country que Elas Pega, Cidade do Interior e Agro é Top. A dupla é precursora do agronejo, um subgênero assim denominado pelo próprio setor musical sertanejo, que surgiu em 2021.
Seu nascimento coincide com a onda dos “agroinfluencers”. Por sua força e transversalidade, a ligação entre o agronegócio – que, de acordo com o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada do Cepea/Esalq, ligado à Universidade de São Paulo, foi responsável por 23,2% do PIB brasileiro em 2024 – e a indústria musical tem sido objeto de pesquisas acadêmicas.
Um desses trabalhos é Onde Está o Agro no ‘nejo’? Uma Análise da Relação do Agronegócio e a Música Sertaneja no Brasil, do cientista político João Felipe Marques, apresentado durante o 49º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, realizado em outubro em Campinas (SP).
Nele, Marques, mestrando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), delimita algumas características do estilo e investiga se há relações diretas entre as gravadoras e empresas do agro.
O amarelo é a soja/ O verde é o pasto/ O azul abençoa o branco/ Das cabeça de gado, diz a letra da canção Hino Agro
Segundo ele, enquanto o sertanejo universitário, subgênero do sertanejo até então dominante, falava sobretudo de relacionamentos e festas, o agronejo se volta ao retrato de uma sociedade forjada a partir da indústria do agro.
Rompe-se, assim, a louvação ao personagem romântico sofredor e festeiro e adentra-se o universo do jovem rico do campo que, ao mesmo tempo que ostenta carros de luxo e os avanços no meio rural, exalta o orgulho de vir da roça.
O agronejo incorpora ritmos como funk, rap, eletrônico e até música latina, dando um ar de atualidade sonora ao sertanejo. Ao mesmo tempo, muitos arranjos usam instrumentos tradicionais interioranos, como a sanfona. Outra característica marcante, de acordo com Marques, é a exaltação da “modernidade” do universo agro e de seu poder econômico.
A partir da percepção dessa recorrência narrativa, Marques decidiu analisar se a indústria do agronegócio tem participação societária formal e direta no agronejo.
Para isso, ele investigou o quadro societário de produtoras que trabalham com nomes-chave do gênero: Luan Pereira, Ana Castela, Chris no Beat, Léo e Raphael e Us Agroboy, composta por Jota Lennon e Gabriel Vittor.
A partir desses nomes, o pesquisador chegou à produtora Agroplay, que tem como sócio Raphael, da dupla com Léo. A empresa, criada inicialmente para empresariar Ana Castela, está vinculada a todos os artistas, exceção feita ao Us Agroboy, que tem uma empresa homônima responsável pelo gerenciamento da carreira da dupla.
Luan Pereira é um dos cantores mais acessados nas plataformas de streaming entre todos os sertanejos. Ana Castela tinha, em setembro, três músicas entre as 50 mais ouvidas no streaming, de acordo com a Pro-Música Brasil. Apelidada de Boiadeira e considerada a rainha do agronejo, em Hino Agro, ela canta: O amarelo é a soja/ O verde é o pasto/ O azul abençoa o branco/ Das cabeça de gado/ Do mato, eu sou/ Sou boiadeiro.
O DJ e cantor Chris no Beat incorpora a batida da música eletrônica ao subgênero, enquanto o Us Agroboy faz o mesmo com o funk e o rap.
 Perfil. Os artistas não são mais filhos de agricultores, como Zezé di Camargo e Luciano, tema de 2 Filhos de Francisco, e sim pessoas egressas da classe média – Imagem: Alisson Demetrio e Globo Filmes/Conspiração Filmes
 Perfil. Os artistas não são mais filhos de agricultores, como Zezé di Camargo e Luciano, tema de 2 Filhos de Francisco, e sim pessoas egressas da classe média – Imagem: Alisson Demetrio e Globo Filmes/Conspiração Filmes
Desfazendo o senso comum, o resultado da pesquisa mostrou, porém, que não é possível identificar elos proprietários entre os sócios das produtoras Agroboy e Agroplay e o agronegócio. O cientista político crê que a relação se dê de maneira mais difusa, por meio de um alinhamento ideológico e de interesses mútuos.
Quem também buscou, mas não encontrou esse vínculo direto foi o pesquisador Caíque Carvalho, que defendeu, em 2023, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), a dissertação de mestrado Da Curtição à Sofrência: A Modernização Agrícola e o Sertanejo Universitário.
Para Carvalho, a relação do sertanejo com a indústria do agronegócio começa a se consolidar no início da década de 1990, com o sertanejo romântico, que teve como grandes ícones as duplas Leandro e Leonardo, Chitãozinho e Xororó e Zezé di Camargo e Luciano.
Nessa época, o sertanejo passa a ganhar espaço com a circulação de suas músicas nas festas agropecuárias patrocinadas pelas empresas atuantes no setor. “Quando um conjunto de artistas faz shows em eventos agropecuários financiados pelo agronegócio, a relação torna-se direta”, diz Carvalho, que prepara, para 2026, o lançamento do livro Sertanejo Universitário, Agronegócio e Indústria Cultural, pela Editora Telha.
Já na virada para os anos 2000, desponta o subgênero sertanejo universitário, com influência mais evidente e pronunciada da música country e do pop. Esse movimento, segundo Carvalho, está diretamente ligado a uma nova economia, que demanda mão de obra e que leva para cidades universitárias do interior jovens que vão cursar faculdades de Zootecnia, Agronomia, Medicina Veterinária e Administração Rural.
O pesquisador acrescenta que há uma mudança de perfil do elenco artístico do meio. Não são mais filhos de pequenos agricultores tentando a carreira artística, como foi o caso de Zezé di Camargo e Luciano, cuja trajetória é retratada no filme 2 Filhos de Francisco (2005), e sim egressos da classe média. Os sertanejos universitários Mateus, da dupla Jorge e Mateus, e Sorocaba, da dupla Fernando e Sorocaba, por exemplo, cursaram Agronomia.
O sertanejo universitário, para Caíque Carvalho, faz uma música moderna e jovial, mas se utiliza de instrumentos que se relacionam com as tradições, como a sanfona. No agronejo, esse vínculo com a tradição rural se aprofunda tanto na letra quanto na melodia. Além disso, diz, “o sertanejo universitário exprimia a potência do agronegócio de forma mais subliminar enquanto o agronejo é como se tirasse a máscara”.
Rompe-se a louvação ao personagem romântico sofredor e adentra-se o universo do jovem rico do campo
Em Agronegócio e Indústria Cultural – Estratégias das Empresas para a Construção da Hegemonia (Expressão Popular, 208 págs., 53 reais), derivado de um mestrado defendido na Universidade Estadual Paulista (Unesp), Ana Manuela Chã pontua que, de fato, no agronejo é muito mais evidente a associação com a defesa ideológica do agronegócio.
“O agronejo herda várias coisas do sertanejo universitário, mas quer chegar na juventude urbana”, diz a autora. Ela lembra que pesquisas apontam que os jovens pouco conhecem o agronegócio e esse público é primordial no projeto de “convencimento” sobre a importância do setor para a economia.
A pesquisadora avalia que se viu uma oportunidade para o surgimento do agronejo durante a Presidência de Jair Bolsonaro, que explicitava a defesa do agro. “Essa identificação, por meio da música, do Brasil como o país do agro é um caminho privilegiado para construir essa identidade nacional”, afirma.
Ou seja, o laço entre a música e o agro não se dá por meio de um vínculo formal, mas o vínculo temático e regional cria uma associação simbólica importante. “Isso também serve para melhorar a percepção do setor por parte da sociedade e, em última análise, a vender produtos”, conclui Marques. •
Publicado na edição n° 1386 de CartaCapital, em 05 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A louvação do agro’
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