Política
Reinvenção completa
Os planos de Brasília para tirar a estatal do vermelho prometem inaugurar uma nova fase na história da empresa
Os Correios tiveram prejuízo acumulado de 4 bilhões de reais nos últimos três anos e outro de igual valor só no primeiro semestre de 2025. A sangria é obra de uma “tempestade perfeita” causada por fatores tecnológicos e mercadológicos no Brasil e no mundo. Mas, na pátria nativa, sabe como é, tudo é sempre culpa do “Estado incompetente”, e os privatistas de plantão voltam a defender a privatização da empresa. Não passa pela cabeça do governo vendê-la, dada a importância social da estatal, capaz de chegar aos rincões do Brasil como nenhum outro braço público. A ideia é bem diferente. Uma aposta na reinvenção dos Correios.
Os planos preparados pela diretoria da empresa e pelo governo são robustos, bilionários. Hoje, ela está concentrada na entrega de correspondências e encomendas. A intenção é transformá-la em uma companhia de logística. Significa atuar com transporte, gestão de cargas e soluções integradas na cadeia de suprimentos, o que exige investimento pesado em digitalização e automação. O próprio setor público pode dar um empurrão enquanto cliente. Segundo a Lei nº 14.744, de 2023, órgãos públicos devem contratar preferencialmente os Correios e não precisam de licitação. Brasília pretende estimular esse tipo de contrato País afora.
É possível que os Correios também mergulhem em novas áreas. Isso ocorreu de forma exitosa com outras empresas do ramo no mundo, caso da Postale Italia, que é controlada pelo Estado e tornou-se também banco e seguradora. A estatal brasileira teve uma experiência dessa, o Banco Postal, de 2002 a 2017. Integrantes do governo acham que a iniciativa não tinha sido bem desenhada e pode ser revisitada. O presidente Lula esteve na Itália em outubro, para encontrar o papa, e reuniu-se com o chefe da Postale. Disse que representantes do Brasil e da companhia italiana iriam conversar.
A reestruturação dos Correios foi objeto de estudos da consultoria McKinsey, em paralelo a negociações do governo com o NDB, o “Banco dos BRICS”. Caso vingue um empréstimo da instituição, será com esse dinheiro que os Correios investirão em transição digital. O plano completo será conhecido em novembro. A empresa anunciou genericamente suas intenções em 15 de outubro. Dois motivos explicam a falta de detalhes. Um é que nem tudo está fechado. O outro é que seu presidente, Emmanoel Rondon, crê que informações serão “vazadas” à imprensa após a próxima reunião do conselho de administração, o órgão decisório máximo. O colegiado reúne-se uma vez por mês, na última quarta-feira do calendário, e terá de aprovar o plano.
Rondon, um funcionário de carreira do Banco do Brasil com traquejo em gestão e logística, assumiu em setembro justamente com a missão de chacoalhar os Correios. No anúncio genérico, disse que haverá programa de demissão voluntária para enxugar o quadro, renegociação com fornecedores para poupar despesas, tentativa de recuperar clientes graúdos e análise de experiências internacionais. E, o mais delicado: que busca 20 bilhões de reais nos bancos. Essa quantia equivale a um ano de faturamento da empresa. Segundo fontes do governo, instituições públicas farão parte da operação, pois, se houver apenas instituições privadas no jogo, o Correios será esfolado por juros. Os recursos vão servir basicamente de capital de giro para ajudar a empresa a reaver grandes clientes. E serão liberados aos poucos, atrelados a metas.
A sangria financeira é resultado de uma tempestade perfeita ao longo de uma década, história que teve na “taxa das blusinhas” seu último capítulo. Compras internacionais inferiores a 50 dólares não pagavam imposto até julho de 2024 e ingressavam no País via Correios. O fim da isenção as encareceu e as compras caíram. Grupos estrangeiros passaram a trazer mercadorias ao Brasil por conta própria. Usar os Correios, que funcionavam como uma espécie de alfândega, deixou de ser vantajoso. Esses foram alguns dos principais motivos do prejuízo da estatal em 2024 e 2025.
O déficit acumulado no primeiro semestre de 2025 ultrapassa 4,3 bilhões de reais
Operar no vermelho não é novidade em uma empresa com função social. Nos EUA, o serviço postal, que é do Estado, tem perda anual de 6 bilhões de dólares. É uma companhia bem maior: 640 mil trabalhadores, média de um “carteiro” para cada 530 habitantes. A empresa daqui conta com 10 mil agências, está em todas as cidades do País. São 84 mil empregados, o que dá um “carteiro” para cada 2,3 mil brasileiros. O salário médio é de 6 mil reais, nada nababesco, embora o deputado Pedro Paulo, relator no Congresso da reforma administrativa, tenha se valido do rombo dos Correios para defender um teto salarial nas empresas públicas idêntico ao dos servidores em geral.
Após a fundação da República, em 1889, os Correios registraram o primeiro lucro somente em 1940. Nos 21 anos da ditadura inaugurada em 1964, isso se repetiu só cinco vezes. O Plano Real, nos anos 1990, mudou a realidade. Contas no azul tornaram-se comuns. Até que veio a tempestade perfeita a partir de 2013. Após um lucro recorde de 1 bilhão no ano anterior, o caixa foi corroído por alteração nos procedimentos contábeis nacionais, que obrigou a empresa a calcular de modo distinto o impacto futuro de benefícios a seus empregados, como aposentadoria. De 2017 em diante, os bancos começaram a abandonar o envio de boletos físicos de cobrança, e os Correios ficaram sem o maior cliente cativo. Isso foi compensado pelo aumento das entregas do comércio eletrônico, as quais explodiram na pandemia de 2020 e 2021, anos de ganhos e lucros recordes da estatal.
O avanço do e-commerce levou firmas privadas, como Mercado Livre e Amazon, a internalizar as entregas, ou seja, a desistir dos Correios. Estes conseguiram contornar a perda com novos clientes, como as companhias asiáticas que miraram o Brasil, caso da Shopee. Até que veio a “taxa das blusinhas”. Claro que, em meio a tudo isso, houve erros de gestão da estatal, que não se adaptou como deveria aos novos tempos, aspecto superdimensionado pelos privatistas. “Privatização não é a solução”, tem dito a ministra da Gestão, Esther Dweck, em entrevistas.
Outra visão da ministra é que os Correios sofreram com uma espécie de privatização descontrolada do mercado de entregas. Levar cartas e encomendas para pobres em lugares distantes custa caro, a estatal bancava tal custo com o dinheiro obtido em negócios no “filé” do mercado de entregas, os grandes centros urbanos. Empresas particulares entraram nas maiores cidades e “roubaram” clientes dos Correios, sem ter a obrigação constitucional da estatal de prover serviços nos rincões. Há no Congresso propostas para criar um fundo de universalização dos serviços postais, a ser abastecido com a cobrança de 1% da receita de empresas privadas. O deputado Leonardo Monteiro, do PT de Minas Gerais, é proponente de uma lei dessas, adormecida desde 2019. Ele acredita que é hora de fazê-la andar. O governo vê o projeto com bons olhos. •
Publicado na edição n° 1385 de CartaCapital, em 29 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Reinvenção completa’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.


