Economia
Um edifício de papel
A nova proposta tem pontos defensáveis, mas é burocratizante e enfrentará resistência das corporações
Com 96 assinaturas até segunda-feira 20, a Proposta de Emenda à Constituição da reforma administrativa, apresentada pelo relator Pedro Paulo (PSD), avança na Câmara dos Deputados em meio a diversos obstáculos. Entre eles, destacam-se as resistências corporativas da Advocacia-Geral da União, do Judiciário e do próprio Legislativo às propostas de controle e de teto de gastos. Outros entraves são as inconsistências do próprio texto, apontadas por vários analistas. A PEC, por sinal, é uma das prioridades do presidente da Casa, Hugo Motta, que pretende pautá-la ainda em 2025.
O predomínio de deputados da extrema-direita entre os signatários revela que a nova proposta herda o espírito da famigerada PEC 32/2020, do governo Bolsonaro. Zé Trovão, Carlos Jordy, Marcel van Hattem, Osmar Terra e Júlia Zanatta estão entre os que subscrevem o texto. Caso tivesse sido aprovada, a PEC original teria aprofundado a já significativa desestruturação da administração pública promovida pelo ex-presidente, condenado por tentativa de golpe de Estado pelo Supremo Tribunal Federal. Entre os efeitos mais nocivos estavam a eliminação de 10% do funcionalismo, a imposição de critérios privatistas na gestão pública, o avanço de um fiscalismo rígido e punitivista, além do assédio institucional recorrente a servidores.
A atual proposta é diferente, porém, da PEC 32/20. Esta visava claramente privatizar, cortar gastos e demitir servidores. A proposta atual é mais gerencialista, no sentido de enfatizar o mérito, a competição entre servidores. A reforma pretende tornar o serviço público mais eficiente e com melhor atendimento ao cidadão. Visa também, e este é um aspecto inédito, aplicar os mesmos princípios ao funcionalismo dos Três Poderes na União, nos estados e nos municípios. Não promoverá ajuste fiscal, não pretende reduzir o tamanho do Estado nem reduzir direitos dos servidores, argumentam seus defensores. Para alcançar maior eficiência do serviço público, propõe combater privilégios e instituir a meritocracia. Na tentativa de aumentar as chances de sua aprovação, Pedro Paulo assegura que a estabilidade no cargo, considerada “inegociável” pela ministra Esther Dweck, da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, será mantida intacta.
Com o apoio maciço de deputados da extrema-direita, a proposta herda o espírito da PEC de Jair Bolsonaro
Rudinei Marques, presidente da Unacon, o sindicato dos auditores e técnicos federais de finanças e controle, identifica inúmeros problemas na proposição. “Em primeiro lugar, Pedro Paulo atropelou todo mundo. Constituiu o grupo de trabalho em maio, aliás quem criou foi o Hugo Motta, e o deputado fluminense foi designado coordenador do GT”, observa Marques. Os próprios parlamentares que participaram do colegiado disseram desconhecer o texto até ele vir a público. “Nas várias ocasiões em que ele nos chamou para discutir, simplesmente não ouviu nada do que dissemos. Fomos surpreendidos com o texto. Esperávamos que fosse uma PEC 32 requentada, mas o texto é ainda pior”, avalia o dirigente da Unacon.
São tantas questões jurídicas insustentáveis no projeto, prossegue Marques, que cabe indagar qual é a real intenção do texto. Até cláusulas pétreas, como a independência dos Poderes, o texto fere. “Não tem muita coisa para salvar ali. Estão querendo levar coisas importantes, mas minúsculas, para a Constituição. Se é para fazer uma coisa decente, tem de chamar todo mundo para conversar”, afirma o presidente da Unacon. “Será que precisa fazer emenda constitucional para melhorar as entregas do serviço público? O texto fala sobre digitalização, governo digital, mas já existe uma lei, aprovada em 2021, que trouxe muita coisa, é só implementar. Alguns parlamentares parecem ter uma tara por PEC. Acho que o Pedro Paulo está usando isso como vitrine, um trampolim, para algum rumo político mais ousado em 2026. Mas é um negócio malfeito.”
Outro aspecto é a redundância em relação ao trabalho do MGI. É o caso da criação de 20 níveis para todas as carreiras do funcionalismo. O ministério já fez muita coisa, destaca o dirigente, mexeu na forma de recrutamento, com o Concurso Público Nacional Unificado (CPNU), saiu uma nova lei geral, com parâmetros para todos os entes federados, incluindo cotas. Há também várias medidas em andamento em Inteligência Artificial.
Disputa. Haverá paralisação na UnB. Cardoso Jr. cobra postura propositiva dos sindicatos. Pedro Paulo propõe consórcios intermunicipais para ratear custos – Imagem: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil, Zeca Ribeiro/Agência Câmara e Acervo/Universidade de Brasília
Agora, acrescenta Marques, o deputado quer levar para a Constituição o que foi feito na União, para “enfiar goela abaixo dos outros entes federados”, inclusive um arcabouço constitucionalizado. “Eu acho que isso não cola. O próprio ministro Edson Fachin, presidente do STF, já disse que não vai aceitar que haja essa interferência no Judiciário.”
No Judiciário, a reforma defende a demissão de juízes condenados por infrações disciplinares, o fim do uso da aposentadoria compulsória como forma de punição máxima, proibição de férias de 60 dias para juízes e proibição do pagamento de licenças condicionadas ao tempo de serviço, segundo destacou a Agência Brasil. Essa pretensão explica a reação de Fachin, que reafirmou em nota oficial, após receber Pedro Paulo, diversos princípios constitucionais e garantias para o trabalho do Judiciário.
A parte da proposta que ataca privilégios é considerada boa por muita gente, dentro e fora do governo, mas poucos acreditam em seu avanço. A AGU é contra porque recebe os honorários de sucumbência. O Judiciário é contra porque juízes e desembargadores recebem penduricalhos acima do teto. O próprio Legislativo, que também recebe acima do teto, deve opor-se.
A inspiração de grande parte da proposta do deputado Pedro Paulo no trabalho desenvolvido pelo MGI, apontada por Marques, é indisfarçável. Criado em 2023, após quatro anos de sucessivas reduções do quadro de servidores civis, congelamentos salariais, assédio institucional e desincentivo à carreira pública, na gestão anterior, o ministério tem como eixo a reconstrução das capacidades administrativas e institucionais do governo federal, valorização de servidores e modernização administrativa, para proporcionar melhores serviços públicos à população. “O Brasil precisa de um Estado forte e capaz, e isso só será possível com servidores capacitados, valorizados e comprometidos com o interesse público”, ressalta José Celso Cardoso Jr., secretário de Gestão de Pessoas do MGI.
Caso a proposta de reforma defendida por Pedro Paulo e abraçada por Hugo Motta fosse aprovada, “certamente o Poder Público perderia ainda mais capacidades administrativas e institucionais de formular e implementar políticas públicas e, portanto, de enfrentar os problemas nacionais. É muito provável que ocorresse um aumento das heterogeneidades e desigualdades que marcam historicamente a sociedade e a economia brasileira”, diz Cardoso Jr.
O Judiciário não deve abrir mão dos penduricalhos que ultrapassam o teto
Sobre as críticas de que sua proposta é pouco flexível para os estados e municípios, que precisariam contratar inúmeras assessorias para se ajustar às regras, Pedro Paulo afirmou a CartaCapital que a reforma “privilegia normas gerais, com aplicação modulada pelas possibilidades dos vários entes”, o que não é novidade no federalismo brasileiro. O teto orçamentário mais restritivo criaria, segundo o deputado, condições fiscais para destinar mais recursos para políticas públicas na saúde, educação e segurança. Para enfrentar o aumento de custos e o excesso de burocracia, sugere a formação de consórcios intermunicipais.
Salvo raras exceções, os sindicatos não entram na discussão da reforma administrativa. “Todo o sindicalismo, de A a Z, está contra qualquer coisa que diga respeito à reforma administrativa. São da negação completa. Quem faz proposta de reforma do Estado no Brasil? É a direita. Você já viu a esquerda apresentar alguma proposta? Então o problema é esse, se o campo progressista não mudar a atitude e sair do passivo-reativo para uma postura mais ativa, propositiva, vai ser difícil, pois mais cedo ou mais tarde, vão impor uma reforma dessas e vai ser complicado”, chama atenção Cardoso Jr. “Assumir tal postura transmite a ideia de que o Estado não tem problema e funciona lindamente. Sabemos que não é verdade. Tem muita coisa para melhorar, mas eles não estão abertos a construir soluções.” •
Publicado na edição n° 1385 de CartaCapital, em 29 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um edifício de papel’
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