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Desacelerar para quê?

Frear a economia neste momento é, ao mesmo tempo, desnecessário e indesejável

Desacelerar para quê?
Desacelerar para quê?
Dólar. Apesar da maior instabilidade externa, o real se valorizou 15% frente ao dólar e isso vem segurando preços de alimentos e bens comercializáveis – Imagem: Joédson Alves/Agência Brasil
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O Brasil cresceu 3,3% entre 2023 e 2024, mas entrou em ritmo mais lento no segundo trimestre de 2025, segundo o IBGE. Consumo das famílias, do governo e os investimentos esfriaram. Os dados do indicador de atividade mensal do Banco Central, o IBC–Br, apontam que tal desaceleração persiste no mês de julho, reforçando a percepção de que o fôlego inicial do ciclo de retomada perdeu intensidade. Para alguns, essa desaceleração seria condição necessária para controlar a inflação. Discordamos. Frear a economia neste momento é, ao mesmo tempo, desnecessário e indesejável.

É desnecessário porque a resposta da inflação no Brasil a variações no nível de atividade econômica parece ser negligenciável. A ideia de que o freio seria necessário apoia-se no diagnóstico de que a inflação decorre de o PIB crescer acima da taxa de crescimento do chamado “produto potencial”, cujas estimativas variam entre 1,9% pela OCDE e 2,4% pelo Banco Central. Mas o que é esse produto potencial? Pela teoria convencional, seria o nível mais elevado de produção que uma economia poderia atingir sem gerar pressões inflacionárias. Entender esse conceito, portanto, é essencial para a compreensão da condução das políticas monetária e fiscal e dos debates sobre crescimento sustentável.

O cálculo do produto potencial, entretanto, é problemático. Na prática, as principais métricas desse indicador nada mais são do que uma tendência ou média suavizada da série do próprio PIB corrente. Há também metodologias de cálculo do produto potencial que incorporam tendências suavizadas a partir de dados de mercado de trabalho e do estoque de capital que, por sua vez, são sensíveis ao próprio ciclo econômico. O problema é que isso pressupõe exatamente aquilo que se quer demonstrar: que a economia sempre retorna sozinha ao equilíbrio e que o PIB real nunca se afasta muito do “potencial”. Assim, políticas monetária e fiscal restritivas, ao contribuírem para a desaceleração do crescimento da economia, invariavelmente reduzem as estimativas de média ou tendência da série do PIB, impactando negativamente os indicadores que medem o produto potencial. De forma análoga, o crescimento do PIB efetivo tenderia a elevar as medidas de produto potencial. Logo, o potencial de crescimento do Brasil certamente foi ampliado com o investimento em capacidade produtiva crescendo mais fortemente que o PIB em 2024, algo pouco destacado no debate público.

O investimento em capacidade produtiva cresceu mais que o PIB em 2024, algo pouco destacado no debate

Mesmo aceitando essas métricas, a literatura internacional mais recente não apresenta evidências robustas de que inflação responda ao hiato entre produto observado e potencial. Estudo recente do Made–FEA/USP vai na mesma linha ao mostrar que a inflação no Brasil não parece ser sensível ao nível de atividade da economia; o estudo também analisa os dados de inflação desagregados e mostra que a maioria dos grupos de bens que compõem o índice geral de inflação não responde a variações na medida de hiato do produto. Esses resultados sugerem que, por aqui, a inflação parece reagir mais a outros fatores, como as observações passadas da própria inflação e ao câmbio, do que ao PIB. Em 2025, apesar de maior instabilidade no cenário externo, o real valorizou 15% ante o dólar até o início de outubro de 2025 (a título de comparação, o peso argentino desvalorizou 38% no mesmo período). Essa valorização do real já vem segurando preços de alimentos e bens comercializáveis, com queda mais clara inicialmente no atacado (tal como medido pelo ­IGP–M), e que, com alguma defasagem, vem chegando no consumidor. Se a inflação vem cedendo, e dada a incerteza sobre a resposta dos preços ao atual nível de atividade, a desaceleração do crescimento mostra-se, portanto, desnecessária.

Ela também é indesejável se feita à custa dos gastos sociais e do emprego, como defendem vozes mais próximas ao mercado. Para essa visão, o arrocho deveria vir acompanhado de austeridade adicional, inclusive congelando o salário mínimo e importantes políticas de assistência social. O objetivo desse tipo de política, de forma mais ou menos declarada, no fim das contas sempre é o de esfriar a economia até elevar o desemprego, freando o aumento dos salários e seus efeitos nos custos de produção. Contudo, convém lembrar que os salários formais, medidos pelo Caged, só voltaram a se recuperar a partir de 2023 e ainda estão 4% abaixo do nível de 2020 em poder de compra, o que evidencia o risco de aprofundar desigualdades, caso medidas adicionais de restrição avancem.

Além disso, é incorreto afirmar que a política fiscal do governo federal siga expansionista. O impulso de 2023–2024, que ajudou no crescimento do PIB, deveu-se à PEC da Transição em 2023, ao pagamento de precatórios e gastos emergenciais com enchentes e queimadas que não foram contabilizados na regra fiscal. Em 2025, sem esses gastos excepcionais, a despesa primária caiu 2,4% no primeiro semestre em relação a 2024, segundo dados do Tesouro Nacional apresentados no Boletim Fiscal dos Estados Brasileiros, do Centro Celso Furtado, que será publicado nas próximas semanas. Portanto, a combinação de políticas monetária e fiscal mais contracionistas, em um cenário internacional mais complicado para as exportações brasileiras, poderia diminuir o crescimento a níveis inferiores aos estabelecidos pelas métricas de crescimento do produto potencial. Tal cenário só não é tão certo, pois estados e municípios, assim como as empresas estatais federais, continuam investindo em ritmo forte em 2025, garantindo algum dinamismo ao conjunto da economia.

Comemorar a desaceleração e ainda apostar em um ajuste que gere impactos negativos sobre o mercado de trabalho, portanto, não interessa a quem defende a continuidade do breve ciclo recente de retomada do PIB com recuperação de salários, redução das desigualdades e queda da pobreza. É preciso reconhecer que, em um país historicamente marcado por desigualdades estruturais, insistir em políticas que sacrificam crescimento e inclusão social em nome de diagnósticos frágeis é, no mínimo, um erro de prioridade. •


Ricardo Summa é professor do Instituto de Economia da UFRJ. Rafael Ribeiro é professor do Cedeplar/UFMG e do Made/FEA–USP.

Publicado na edição n° 1385 de CartaCapital, em 29 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Desacelerar para quê?’

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