Maria Rita Kehl

Opinião

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Prestígio tóxico

Adolescentes inseguros recorrem a pequenas transgressões em busca da aceitação de seus pares, mas a banalização da maldade pode ter consequências fatais

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Alerta. As mortes de jovens por abuso de álcool e drogas dispararam – Imagem: iStockphoto
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Quando meu filho tinha cerca de 10 anos, um amigo da escola lhe contou que havia se apoderado do dinheiro do lanche que caíra da carteira de outro colega. Ouvi a conversa e perguntei ao menino se ele havia devolvido o valor. “Não sou bobo nem nada”, respondeu o guri, visivelmente orgulhoso de seu pequeno delito, que talvez já o qualificasse como um adolescente “esperto”, não mais como uma criança ingênua.

Já escrevi, em outra coluna, sobre o uso equivocado da expressão “­banalidade do mal”, cunhada por ­Hannah ­Arendt e frequentemente interpretada como sinônimo de banalização da maldade. Em ­Eichmann em Jerusalém (1963), a filósofa emprega o termo ao analisar o argumento de inocência do oficial nazista que organizou o envio de prisioneiros às câmaras de gás, alegando estar apenas “cumprindo ordens”. A “banalidade do mal” refere-se, portanto, à crueldade exercida sob o pretexto da obediência. O episódio relatado no parágrafo anterior, envolvendo o colega do meu filho, revela algo bem mais prosaico: o prestígio que o mal pode adquirir.

Parece-me que a atitude permanentemente competitiva, motor do sucesso nas sociedades capitalistas, tornou-se um padrão quase inquestionável de manipulação do laço social. Cada indivíduo mostra-se convicto de que é preciso, a qualquer custo, “levar vantagem em tudo”, como ensinou Gérson, craque da Seleção Brasileira tricampeã do mundo, em uma campanha publicitária do cigarro Vila Rica nos anos 1970. A chamada “Lei de Gérson” não caracteriza, porém, um traço exclusivamente brasileiro, como tantos afirmam. Trata-se de uma lógica disseminada nas engrenagens do capitalismo contemporâneo, ainda que com graus variados de cinismo.

Se, por um lado, a competitividade faz o capital girar e se expandir, por outro, ela produz um efeito nefasto sobre os “otários” – aqueles que não são suficientemente cínicos para entrar no jogo das pequenas e grandes safadezas cotidianas. Essa predisposição atinge, sobretudo, os adolescentes, inseguros quanto à sua capacidade competitiva e receosos de não ser suficientemente espertos para não acabarem rotulados como “otários”.

Recentemente, o estudo Global Burden of Disease (GBD), publicado na prestigiada revista científica The Lancet e apresentado na Cúpula Mundial da Saúde, em Berlim, alertou para o aumento das mortes por suicídio e pelo consumo abusivo de álcool e outras drogas entre adolescentes e jovens adultos, especialmente nas Américas, um fenômeno já classificado como crise emergente. Acredito que não se trate apenas da busca por ostentar atitudes mais “adultas” – atenção, pais e mães que também fazem uso abusivo de substâncias psicoativas. Trata-se, sobretudo, de uma tentativa de enfrentar a insegurança tão frequente nessa faixa etária, que muitas vezes leva os jovens a adotar comportamentos autodestrutivos.

Talvez, ao se arriscarem no uso de drogas proibidas, os adolescentes se sintam mais espertos. É como se, ao cometerem esse pequeno delito, ganhassem prestígio pela ousadia, pela rebeldia e pelo desafio às normas e ao bom senso que sustentam a vida em sociedade. Dessa forma, buscam reconhecimento entre seus pares, outros jovens igualmente inseguros.

Não tenho elementos para afirmar, mas não me surpreenderia se essa terrível onda de suicídios estivesse concentrada entre os adolescentes menos ousados, aqueles que não conseguem ser tão transgressores quanto seus colegas e, por isso, acabam se tornando alvo de bullying, classificados como “otários”. Da mesma forma, não se pode ignorar que a perturbação provocada pelo uso abusivo de álcool e drogas – esse suposto “passaporte para a vida adulta” – leve tantos jovens a desistir da própria vida. •

Publicado na edição n° 1385 de CartaCapital, em 29 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Prestígio tóxico’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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