Opinião

O coletivo que nos falta

Estamos sempre buscando chegar antes, cruzando a frente uns dos outros, como se estivéssemos sós e apenas a nossa vontade importasse

O coletivo que nos falta
O coletivo que nos falta
O estresse em São Paulo atinge 35% da população economicamente ativa
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“Para que a gente possa promover e facilitar uma experiência que inclua menos moldes e mais invenção, precisamos fazer uma revolução do ponto de vista da educação formal nas práticas estabelecidas e nas escolhas que as famílias fazem.”
Ailton Krenak

Essas escolhas tenderão a formar os indivíduos para toda a vida — inclusive no que diz respeito à capacidade de olhar o próprio grupo e as decisões tomadas pelo coletivo.
Para isso, é fundamental que se possa contar com o devido apoio didático.

No Brasil, o mercado de livros movimenta cerca de 4,2 bilhões de reais anualmente, enquanto o de apostas esportivas excede 100 bilhões de reais.

Ao lado disso, dados recentes mostram que professores perdem, em média, 20% do tempo de aula apenas para restabelecer a ordem na sala.

De fato, basta circular — como pedestre ou motorista — pelas ruas brasileiras para verificar que ainda não ultrapassamos o estádio espermatozoídico: estamos sempre buscando chegar antes, cruzando a frente uns dos outros, como se estivéssemos sós e apenas a nossa vontade importasse.

No Japão, por exemplo, isso é inconcebível: um pedestre jamais cruza à frente de outro. Para-se para que a outra pessoa passe.

Na Alemanha, e em Brasília, basta alguém se aproximar da faixa de pedestres para que os carros imediatamente parem.

Podem parecer coisas menores, mas não são. Trata-se de limitar o nosso direito de ir e vir por consideração aos demais, o que nos dá, a todos — crianças e adultos —, o sentido do coletivo, em que a vontade individual deve ser harmonizada com a dos outros.

Esse sentimento de coletividade, ou a falta dele, acaba por permear também as políticas públicas, inclusive a política externa.

Nosso pouco empenho na integração regional, por exemplo, pode decorrer justamente dessa reduzida capacidade de ver o conjunto.

Essa limitação se torna ainda mais visível em momentos de crise, como o atual, em que a moeda de troca internacional, o dólar, perde 1% de seu valor a cada 30 dias.

Por isso, a potência hegemônica, os Estados Unidos, busca pilhar os recursos minerais da região para compensar a perda monetária.

Não é outro o sentido da agressão à Venezuela, país que possui a maior reserva de petróleo do mundo, além de extensas jazidas de ouro e de terras raras, como o cobalto e o coltan, indispensáveis à produção de eletrônicos.

O socorro à desastrada economia do presidente de extrema-direita da Argentina, por parte do governo também de extrema-direita dos EUA, tem como garantia o acesso às terras raras argentinas. Esses minérios tornaram-se ainda mais estratégicos após as restrições impostas pela China às exportações de elementos vitais para a indústria de eletrônicos, uma retaliação às tarifas alfandegárias implementadas pelo desgoverno de Donald Trump.

Na verdade, o enfraquecimento da moeda estadunidense decorre de um desequilíbrio econômico-estrutural profundo: a dívida pública atingiu 37 trilhões de dólares, sendo 24,5 trilhões até a ascensão de Trump — um salto de 12,5 trilhões em apenas nove meses de gestão.

Por outro lado, a situação tampouco é alentadora no outro grande ator do Ocidente: a Europa.
A Itália, terceira maior economia do bloco, registra 5,7 milhões de pessoas em estado de pobreza absoluta, ou quase 10% da população. Isso revela, entre outras coisas, a falência das políticas de extrema direita nos dois lados do Atlântico.

Apesar disso, a primeira-ministra italiana, também de extrema-direita, acaba de comprar, exclusivamente para seus voos, um jato Gulfstream no valor de 77 milhões de euros.

Infelizmente, o Brasil também dá passos incertos no campo internacional. Um deles pode ter sido instalar a sede da “Aliança Internacional contra a Fome” em Roma.

Embora a situação de fome na Península Itálica seja real, há pouca justificativa para tal decisão, uma vez que o continente mais atingido pela fome é a África.

Seria, portanto, mais coerente que a sede da referida Aliança se localizasse em Adis Abeba, capital da Etiópia e sede da União Africana.

Vale recordar que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) — maior organismo especializado do sistema ONU — já tem sede em Roma e conta com milhares de servidores.

Além da FAO, ocupam-se do tema da fome, na mesma cidade, o Programa Mundial de Alimentos (PMA) e o Fundo Internacional para o Desenvolvimento da Agricultura (FIDA), ambos vinculados às Nações Unidas.

Mais ainda: só o Brasil mantém quatro missões diplomáticas em Roma.

Nesse sentido, Antonio Candido, em Os Parceiros do Rio Bonito (Editora Todavia), recorda a citação de D. M. Goodfellow, em Principles of Economic Sociology:

“O homem não precisa apenas de comida, mas de uma organização para obter comida.”

Por essa razão, pensar em combater a fome fora do contexto dos agricultores e de suas organizações; das universidades locais e centros de pesquisa; das organizações políticas e do povo com seus conhecimentos tradicionais não parece ser a via mais eficaz para eliminar o flagelo da fome no mundo.

Talvez, com a mesma obra de Antonio Candido, possamos aprender a fazer diferente, lembrando o que ele refletiu sobre a economia do interior paulista:

“… e só a análise desse processo pode dar elementos para compreender e definir a economia seminômade, que tanto marcou a dieta e o caráter do paulista.”

Depois de tanto sedentarismo — físico e intelectual — talvez seja hora de pensarmos outras formas de estar no mundo contemporâneo.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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