Economia

Há uma bolha no ar

Inflada por um desempenho desigual e, sobretudo, pela euforia típica dos ciclos especulativos, a bolha da IA parece cada vez mais evidente. Os efeitos do estouro parece difícil de prever

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As menções a uma possível bolha financeira têm se tornado cada vez mais frequentes, tanto na mídia especializada quanto em relatórios de instituições financeiras públicas e privadas. O FMI dedicou a última edição de seu Global Financial Stability Report para analisar sinais globais desta bolha, que se mostra mais evidente no mercado de ações de empresas de inteligência artificial. Esse segmento, ao mesmo tempo em que experimenta um forte boom de investimentos, apresenta sinais claros de um processo de valorização especulativa.

As bolhas de preços são um elemento inerente ao capitalismo. A partir da década de 1980, se tornaram mais frequentes e intensas, em razão da financeirização da economia e desregulação dos mercados. Esse movimento ampliou o número de episódios nos quais ativos atingem valorações descoladas de fundamentos econômicos, tornando as bolhas mais comuns e mais impactantes. Desde então, destacam-se quatro bolhas de grande repercussão: bolha .com, marcada pela valorização excessiva e rápida de empresas do setor de tecnologia no final dos anos 1990 e início dos anos 2000; bolha imobiliária, responsável pela crise financeira global de 2008; a bolha das criptomoedas, caracterizada pela valorização acelerada e posterior queda de ativos digitais ao longo da última década; a bolha das empresas de IA gerativa, fenômeno mais recente, em que empresas ligadas à inteligência artificial experimentam alta especulativa de seus papéis.

Esses episódios têm características comuns recorrentes: narrativa eufórica sobre as possibilidades do setor envolvido, que atrai investidores e fomenta expectativas exageradas; acesso facilitado ao financiamento, permitindo que mais recursos sejam destinados ao segmento, mesmo com riscos crescentes; descolamento entre os lucros correntes das empresas e os preços de suas ações, indicando que a valorização não reflete o desempenho real com valorização especulativa crescente dos ativos nos mercados secundários, impulsionando ainda mais o ciclo de alta; presença de risco sistêmico, ou seja, possibilidade de que o estouro da bolha tenha impactos amplos sobre todo o sistema financeiro e a economia. Entre os elementos citados, o risco sistêmico merece destaque, pois representa a capacidade das bolhas  gerarem efeitos em cadeia na economia. A crise de 2008 é um exemplo emblemático desse processo, tendo sua origem no setor imobiliário e se propagado de forma global e pervasiva.

Os ganhos de produtividade e portanto, a redução de custos decorrentes da utilização da IA são modestos

No que tange especificamente à bolha da IA, é fundamental, em primeiro lugar, caracterizá-la com base nos indicadores pertinentes. Para compreender plenamente o seu desdobramento, é necessário considerar o contexto histórico das bolhas financeiras, com destaque para a situação geral dos mercados e o recorrente socorro dos bancos centrais em seus desenlaces. Nem uma, nem outra situação indica uma saída fácil para a bolha da IA. No primeiro aspecto, por conta da crescente fragilidade financeira em vários mercados e a possibilidade de contágio; no segundo, por conta de uma ainda elevado comprometimento dos bancos centrais dos países desenvolvidos com o salvamento do sistema financeiro após a bolha imobiliária de 2008. As operações de política monetária não-convencional (quantitative easing) ainda ocupam um espaço crucial no balanço desses bancos centrais. 

A caracterização de uma possível bolha no segmento de inteligência artificial deve partir da comparação entre seus indicadores e os do mercado acionário em geral. Dados recentes sobre a capitalização do mercado norte-americano mostram que, entre 2023 e 2024, o S&P 500 registrou uma alta de 58% — ou 25%, caso se excluam as chamadas “sete magníficas”. Essas, por sua vez, tiveram uma valorização impressionante de 156% em suas ações.

Duas métricas fundamentais — o valor da empresa em relação ao EBITDA e o tradicional múltiplo preço/lucro — apontam para uma clara sobrevalorização. Mesmo para o mercado como um todo, os números já são elevados: o P/L do S&P 500, em torno de 25, supera a média histórica de 17. No setor de tecnologia, representado por índices como o Nasdaq 100 e o S&P 500 Tecnologia, esses múltiplos são ainda mais altos — e alcançam patamares extremos quando se observa o grupo das “sete magníficas” ou big techs.

Em outras palavras, se ainda é possível questionar a existência de uma bolha generalizada no mercado de ações, o mesmo não se aplica ao setor de tecnologia — e menos ainda às gigantes que o dominam.

Índices de Mercados Preço/Lucros  VE/EBITDA
S&P 500 ~24.8x ~15.2x
Nasdaq 100 ~29.2x ~19.1x
Dow Jones Industrial Average ~22.5x ~13.1x
S&P 500  Tecnologia ~31.5x ~20.5x
As 7 Magníficas* (Agregado) ~33.0x                       ~23.8x

* Apple, Amazon, Meta, Google, NVIDIA, Microsoft e Tesla

A contraposição à tese da bolha baseia-se no argumento de que, apesar dos múltiplos elevados, os resultados em vendas e lucros decorrentes dos investimentos em IA vêm crescendo e, por isso, tenderiam a reduzir gradualmente esses múltiplos. No entanto, é preciso destacar que tais resultados têm sido mais lentos e distantes das projeções formuladas por empresas e investidores.

Segundo essa visão otimista, o aumento contínuo da produtividade e a expansão dos lucros justificariam a valorização das ações, sendo os principais limites ao crescimento de curto prazo de natureza física — como a escassez de chips e a capacidade de construção de data centers. Todavia, diversos analistas, entre eles o prêmio Nobel de Economia Daron Acemogluos ganhos de produtividade e portanto, a redução de custos decorrentes da utilização da IA são modestos. 

O ponto central diz respeito às limitações de uso da IA no âmbito das empresas. A este respeito, um relatório elaborado por pesquisadores do Massachusetts Institute of Technology (MIT) destaca e questiona cinco mitos amplamente difundidos.

Mito 1: A IA substituirá a maioria dos empregos nos próximos anos.

Embora exista uma expectativa de que a automação impulsionada pela IA resulte em demissões em massa, os dados analisados apontam para um impacto limitado sobre o emprego. 

Mito 2: A IA Generativa está transformando os negócios.

Apesar de uma alta taxa de adoção das ferramentas de IA Generativa, a transformação efetiva dos negócios permanece pequena. 

Mito 3: As empresas são lentas na adoção de novas tecnologias.

Contrariando a percepção de lentidão, cerca de 90% das empresas já realizaram testes sérios com ferramentas de IA. 

Mito 4: O maior obstáculo para a IA é a qualidade do modelo, questões legais ou dados.

O relatório evidencia que o maior impedimento é, na verdade, a dificuldade de integrar as ferramentas de IA aos fluxos de trabalho existentes. A adaptação das rotinas e processos corporativos para acomodar a IA é um desafio central.

Mito 5: As melhores empresas estão construindo suas próprias ferramentas de IA.

Segundo os pesquisadores, as ferramentas internas apresentam uma taxa de falha duas vezes maior que as soluções externas. 

A perspectiva otimista, sustentada por empresas de tecnologia e investidores, defende que os elevados múltiplos de mercado hoje observados se justificam pelo desempenho esperado das companhias — baseado em um rápido crescimento de vendas e lucros. No entanto, essa narrativa esbarra em obstáculos concretos quando confrontada com a realidade da adoção da inteligência artificial nas organizações. Na prática, a incorporação da IA ao ambiente corporativo tem sido mais lenta e complexa do que o imaginado, reduzindo seu impacto imediato sobre os resultados financeiros. As principais barreiras incluem dificuldades técnicas, limitações de infraestrutura e desafios na adaptação dos fluxos de trabalho. Fatores que, em conjunto, restringem o uso pleno e eficaz da IA no curto prazo.

É possível conjecturar sobre o risco sistêmico do setor de tecnologia a partir da observação de três grupos distintos de empresas. O primeiro reúne as sete magníficas, com atuação diversificada em hardware, serviços digitais e soluções de inteligência artificial. O segundo é composto pelas Pure-play IA, corporações focadas no desenvolvimento de software de IA e já listadas em bolsa. O terceiro grupo corresponde às Foundation Models, empresas dedicadas à criação de modelos generativos de IA, financiadas por capital de risco e ainda fora dos mercados públicos.

Os diferentes segmentos apresentam estágios variados de desenvolvimento e consolidação, o que se reflete em múltiplos significativamente distintos. Um exemplo é a relação Valor de mercado/EBITDA: nas sete magníficas, o indicador varia entre 5 e 15 vezes; nas Pure-play IA, entre 15 e 40 vezes; e, nas Foundation Models, as estimativas — mais imprecisas, por ausência de cotação — vão de 20 a 400 vezes. Apesar das diferenças, há um elemento comum relevante: a forte interconexão entre os segmentos, seja na compra e venda de produtos e serviços, seja nas estruturas de financiamento.

Além dos múltiplos elevados, cada grupo carrega riscos específicos. Nas Foundation Models, o risco tecnológico é alto, acentuado pela competição com empresas mais consolidadas dos outros elos da cadeia. É provável que a maioria dessas startups não sobreviva, o que implicará perdas consideráveis para investidores e fundos de venture capital. Em 2024, as startups de IA captaram cerca de 110 bilhões de dólares, um aumento de 60% em relação ao ano anterior.

O segmento intermediário das Pure-play IA, por sua vez, mostra-se particularmente vulnerável: além dos múltiplos elevados, enfrenta concorrência direta tanto das big techs quanto das novas entrantes financiadas por capital de risco. Mesmo as sete magníficas não estão imunes. Embora apresentem resultados robustos, suas ações seguem fortemente sobrevalorizadas, e a competição global pressiona margens e expectativas. No primeiro semestre de 2025, os indicadores de P/L superaram 30 em várias delas — NVIDIA, Microsoft, Apple e Amazon — e chegaram a um impressionante 100 no caso da Tesla.

O desinflar da bolha pode começar em qualquer um desses segmentos, mas seus efeitos dependerão do grau de risco sistêmico, determinado não apenas pelas interconexões empresariais, mas também pelo perfil de financiamento, o volume de investimentos, o nível de alavancagem e os múltiplos praticados. Inflada por um desempenho desigual e, sobretudo, pela euforia típica desses ciclos especulativos, a bolha da IA parece cada vez mais evidente. Seu estouro — de data incerta e consequências imprevisíveis — pode, em combinação com os sinais já visíveis de fragilidade financeira em diversos mercados, gerar efeitos profundos sobre a economia global.

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