Intervozes
Comunicação popular e clima: quando o território toma a palavra
A comunicação popular como ferramenta de justiça climática, resistência e reconstrução democrática na Amazônia


A crise climática é também uma crise de informação. Enquanto os grandes meios reproduzem narrativas globais e tecnocráticas, muitas vezes atravessadas por visões eugenistas e colonialistas sobre o clima, comunidades periféricas, ribeirinhas, indígenas e quilombolas seguem sendo silenciadas, mesmo estando na linha de frente dos impactos ambientais e apresentando soluções concretas e inovadoras para um problema que afeta toda a humanidade.
Nos últimos anos, a Comunicação Popular tem emergido como uma resposta potente a esse desafio. Ela se consolida como o espaço onde jovens comunicadores, ativistas, artistas e lideranças comunitárias produzem, compartilham e territorializam informações sobre justiça climática, direitos e políticas públicas a partir da ótica dos territórios e das periferias urbanas.
Essa prática parte de uma convicção essencial: não é possível falar sobre clima sem a presença e o protagonismo das comunidades tradicionais e periféricas. Democratizar a informação, nesse contexto, vai muito além do acesso: significa devolver a palavra, o direito de narrar e o poder de representar o próprio território àqueles que historicamente tiveram suas vozes abafadas.
Ainda assim, essa perspectiva enfrenta inúmeros desafios. E é na coletividade que surgem as estratégias para sustentar essas iniciativas. Uma delas é a criação dos Comitês de Comunicação Popular, redes diversas de comunicadores que funcionam como espaços de formação, produção de conteúdo e articulação política. Neles, a comunicação é feita por e para as comunidades, e não apenas sobre elas.
Esses comitês rompem com a lógica hegemônica da informação ao construir ecossistemas comunicacionais baseados na solidariedade, no cuidado e na partilha de saberes. A informação deixa de ser mercadoria e se transforma em bem comum. O que se comunica nasce da vida real dos territórios: o impacto da seca no cotidiano, a luta por saneamento nas baixadas, o enfrentamento à violência ambiental e política.
Além disso, a comunicação popular é também um instrumento de emancipação, uma prática de resistência frente ao poder da mídia corporativa e ao controle das narrativas por grupos políticos e econômicos. Segundo dados da Artigo 19, entre 50 veículos de mídia analisados, 32 pertencem a deputados federais e nove a senadores, revelando uma estrutura concentrada e profundamente desigual, majoritariamente dominada por uma elite branca e masculina.
Pesquisas do Intervozes também revelam a concentração de veículos de rádio e TV nas mãos de políticos. Nas eleições de 2024, por exemplo, 46 candidatos com esse perfil foram mapeados — 80% eram homens e apenas um proprietário se declarava negro, todos eles autodeclarados heterossexuais e cis gênero. No projeto “Amazônia Livre de Fake”, realizado pelo Intervozes em parceria com organizações da Amazônia, 32 políticos da região foram identificados por espalhar desinformação nas redes sociais, 11 deles também são proprietários de mídia — 78% são homens, majoritariamente brancos.
Como é possível construir uma multiplicidade de narrativas se a diversidade não está presente nesses espaços? É justamente por isso que reconhecer e fortalecer iniciativas que colocam a comunicação popular como pauta central é um ato político essencial.
Das margens ao centro do debate
Entre elas, destaca-se o Comitê de Comunicadores Populares das Baixadas de Belém, articulação criada pela Na Cuia, que fortalece jovens, coletivos periféricos e comunidades tradicionais na produção e na circulação de narrativas sobre clima, território e direitos, promovendo a democratização da informação e a participação popular nos debates climáticos a partir das próprias vozes dos territórios.
Outra experiência inspiradora é a Epicentro Jornalismo, centro de mídia independente criado pela Palmares Lab, nascida no Norte e no Nordeste do Brasil. A iniciativa atua na amplificação de narrativas locais sobre a crise climática e ambiental, valorizando a potência criativa das periferias, quilombos e comunidades ribeirinhas, que constroem soluções e saberes a partir de seus modos de vida.
Na multiplicidade das linguagens da comunicação, o podcast Aldeia Urbana se destaca como um espaço de escuta e resistência. Criado pelos estudantes de cinema da Universidade Federal do Pará (UFPA) Cristian e Thaigon, jovens indígenas do povo Arapiun, do Tapajós, o programa aproxima as vozes indígenas e periféricas do debate público, abordando temas que vão da cultura e da ancestralidade às políticas urbanas e aos desafios cotidianos da Amazônia contemporânea.
Já o Tapajós de Fato (TdF) é um veículo de comunicação popular, independente e alternativo que atua no oeste do Pará. Nascido da necessidade de meios comprometidos com as realidades das populações rurais, indígenas e quilombolas, o TdF fortalece o direito à informação de forma acessível e participativa, consolidando-se como uma voz ativa na defesa do território e da Amazônia.
Diante de um cenário em que a crise climática se entrelaça à crise da informação, experiências como essas demonstram que a comunicação popular é, antes de tudo, um ato político, coletivo e transformador. Elas reafirmam que democratizar a informação é redistribuir o poder de narrar, deslocando o centro do discurso para as margens — que, na verdade, sempre foram o coração pulsante da Amazônia.
Essas iniciativas constroem uma nova ecologia da comunicação, baseada em solidariedade, pertencimento e justiça climática, em contraponto ao monopólio da mídia hegemônica. Ao promover a escuta, o compartilhamento de saberes e o protagonismo dos territórios, essas redes transformam a comunicação em ferramenta de emancipação popular, conectando lutas locais a agendas globais.
Assim, comunicar é também cuidar, resistir e reinventar o futuro. Quando as periferias, os povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos contam suas próprias histórias, o mundo não apenas escuta, ele se transforma.
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