Cultura
‘Cirandaia’, de Daniela Mercury, transforma a alegria em manifesto político
O novo disco da Rainha do Axé convoca uma ‘ciranda democrática’ de ritmos e vozes que vão de Zélia Duncan a Davi Kopenawa


O 26º disco de Daniela Mercury, Cirandaia, chega reafirmando a artista como uma das vozes mais inquietas e politizadas da música brasileira. Lançada nas plataformas de música nesta sexta-feira, 17, a obra reúne 15 faixas que misturam ativismo e suas referências musicais afro-baianas.
“Queria falar de ciranda, [fazer] um álbum típico do Brasil, da cultura popular brasileira, que me remete à infância, às festas de rua”, explica a cantora em entrevista a CartaCapital. “E vou jogando minhas mensagens, minhas preocupações, porque sou uma ‘pensadeira’. Quero usar minha arte para trazer alguns alertas”, diz.
Daniela, que começou a carreira sob o peso da censura e da ditadura, insiste que a democracia é um exercício cotidiano: “Aprendi que minha arte tinha que servir à democracia”, ressalta. “Ela precisa ser exercida todos os dias.”
Cirandaia é, segundo a artista, uma convocação para uma “ciranda verdadeiramente democrática, de amor e de reconhecimento do que temos de bom neste país”. O álbum traz uma série de participações especiais, que Daniela chama de “parceiros cirandeiros”, numa espécie de roda simbólica de vozes e ritmos brasileiros.
A faixa de abertura, O Axé É Salvador, celebra os 40 anos da axé music e conta com cantores de blocos afro da Bahia, também autores da canção. “Os blocos afros não são tão famosos quanto deveriam. Essa música é uma homenagem a eles”, afirma Daniela, que começou sua trajetória aprendendo com esses grupos.
Na sequência, É Terreiro, de Vini Mendes, traz a poderosa voz de Alcione e se inspira na entidade Maria Padilha, símbolo da força feminina nas religiões afro-brasileiras. “Não estou falando de religião, mas da imagem de uma mulher poderosa”, explica Daniela. “Meu trabalho é esse, trazer afeto e amor.”
A terceira faixa do álbum Cirandaia celebra os ritmos paraenses com a música Cute Love Baby, de autoria da Dona Onete e que participa da faixa. Daniela já fez sucesso no carnaval com música da rainha do carimbó.
O disco segue costurando parcerias e homenagens. Cute Love Baby, com Dona Onete, celebra o carimbó e os ritmos do Pará. O samba-reggae Suma, de Martins, une Daniela à sertaneja Lauana Prado, com quem compartilha a defesa da visibilidade LGBTQIA+. “Tinha que achar uma mulher arretada, e Lauana é essa mulher que florescendo num universo mais conservador”, diz.
A faixa-título, Cirandaia, composta por Daniela, Gabriel Mercury e Juliano Valle, resume o espírito do álbum: “A arte pede coragem para fazer diferença / É nossa rebeldia contra a violência”. A canção defende o clima, a paz, a felicidade e a cultura… uma ode à resistência em tempos sombrios.
Entre os duetos mais delicados está Antes de Você Chegar, bolero de Almério e Ceumar, em que Daniela canta ao lado da amiga Zélia Duncan. Em Saudade do Mar, com a cabo-verdiana Mayra Andrade, ela presta homenagem a Dorival Caymmi. Já Ilha da Coragem (Almério) e Te Digo Baby (Lucas Santtana) reforçam a amplitude das parcerias do disco.
O xote Bicho Amor, de Geraldo Azevedo e Capinan, é apontado por Daniela como o embrião do projeto. O compositor ainda assina Amar É Perigoso, com Abel Silva, na qual Daniela divide os vocais com a irmã, Vânia Abreu. Trata-se da primeira colaboração das duas em disco.
Um dos momentos mais fortes de Cirandaia é Quem Vai Segurar o Céu?, com a participação de Ehuana Yaira Yanomami, Gabriel Mercury, Jeane Terra e Davi Kopenawa Yanomami. A música fala de preservação da floresta e dos direitos dos povos originários, entremeando versos e falas de Kopenawa sobre as ameaças à Amazônia.
O álbum ainda traz Deus Tem Mais Ocupação, de Chico César (com o próprio na gravação), Primavera, de José Miguel Wisnik, que Daniela conheceu no casamento de Zé Celso Martinez Corrêa, e o pagodão Meu Corpo Treme, com a jovem Rachel Reis.
Daniela Mercury ainda se preocupa com o destino de nossa democracia, ameaçada no governo passado. “Espero que a gente não repita esse ciclo”, afirma. “Não acho que a gente esteja numa situação mais calma porque infelizmente os brasileiros, diante da situação que estávamos, elegeram um Congresso muito à direita e reacionário”, destaca.
Nos últimos anos, ela reconhece, não há mais como cantar apenas o carnaval e a alegria baiana. É preciso também despertar. Cirandaia é, assim, um disco-manifesto. Um convite à dança e à consciência.
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