Cultura
O que é experimental?
Berg, de 1964, e As Meninas do Laranjal, de 2023, revelam de que forma o conceito de “difícil” evolui na literatura


O que é “experimental” em cada época? A literatura no século XX nasce sob o signo da vanguarda, com obras – como aquelas de Virginia Woolf ou Marcel Proust – que rompem com as regras tradicionais. São trabalhos que usam uma linguagem não convencional, estruturas fragmentadas e processos psicológicos descontínuos.
Esses elementos repercutem na cultura desde então e dois romances lançados recentemente no Brasil dão o ensejo a uma reflexão sobre esta pergunta: Berg, de Ann Quin, e As Meninas do Laranjal, de Gabriela Cabezón Cámara.
Primeiro romance da escritora inglesa Ann Quin (1936–1973), Berg foi publicado em 1964. O protagonista parte em uma jornada para encontrar e matar seu pai; seu primeiro passo é embaralhar a própria identidade, invertendo seu nome e se apresentando às pessoas como “Greb”.
A escritora argentina Gabriela Cabezón Cámara lançou As Meninas do Laranjal em 2023. A narrativa se passa no início do século XVII e segue Antonio, nascido Catalina, que se transforma em soldado no Novo Mundo depois de ter sido monja no Velho.
O experimentalismo de Berg está nas estratégias de apresentação das oscilações do estado mental de seu protagonista. Até que ponto podemos confiar na “realidade” daquilo que acontece no romance? As cenas são fruto dos delírios do protagonista ou são compartilhadas por outros personagens?
Berg. Ann Quin. Tradução: Gisele Eberspächer. DBA (184 págs., 76,90 reais)
Alguns eventos importantes da narrativa são desmentidos na progressão da história – e é precisamente essa instabilidade que marca a experiência de leitura do romance de Ann Quin. Com frequência, sem aviso prévio, as impressões subjetivas do protagonista invadem a descrição da realidade externa, dificultando uma definição restrita do que é “fora” ou “dentro”, “percepção” e “projeção”.
No caso de As Meninas do Laranjal, o experimentalismo não está no ensimesmamento de uma subjetividade, e sim na multiplicação de vozes e registros de existência apresentados.
Querendo retribuir aquilo que acredita ter sido um milagre da Virgem do Laranjal, o soldado Antonio foge de sua caserna, levando consigo duas crianças indígenas que seu superior mantinha presas. Durante a fuga, ele escreve uma carta para a tia, que está na Espanha, atravessando a floresta com as crianças, dois macacos e dois cavalos.
Gabriela mescla não apenas o espanhol ao latim e a alguns vocábulos em guarani, mas essas três vidas humanas ao fogo, à chuva, às árvores, aos sons e aos animais.
As Meninas do Laranjal. Gabriela Cabezón Cámara. Tradução: Silvia Massimini Felix. Companhia das Letras (216 págs., 89,90 reais)
Se Berg responde a certa dimensão descarnada da experiência humana nas duas décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial, As Meninas do Laranjal responde à onda de reivindicações de visibilidade por parte de estratos recalcados dessa mesma experiência.
Ann Quin resgata a densidade psicológica de Virginia Woolf e a geometrização estruturada de Samuel Beckett. Gabriela Cabezón Cámara revisita tanto a história colonial quanto o romance histórico, abarcando a “cosmovisão vitalista” dos mbiás-guaranis, como registra ela própria nos agradecimentos.
Não há texto sem contexto. E todo experimentalismo opera a partir de certos preceitos tácitos que variam no tempo e no espaço.
Berg e As Meninas do Laranjal, mesmo com suas diferenças, convergem nesse ponto: ao reinventar a linguagem e nossas modalidades de reflexão psicológica, a literatura também registra, de forma oblíqua, os limites daquilo que pode ser tomado por “excêntrico” ou “difícil”. •
VITRINE
Por Ana Paula Sousa
Após o sucesso de Impostora: Yellowface,a sino-americana R.F. Kuang escreveu Katábasis (Intrínseca, 480 págs., 69,90 reais), definido, no material de divulgação, como um livro “que une romance, lógica, filosofia e as mitologias grega e chinesa” para tratar de misoginia e estruturas de poder.
A Todavia publica este mês Sobre o Cálculo do Volume 3 (168 págs., 99,90 reais) dando seguimento à septologia da dinamarquesa Solvej Balle. A protagonista da saga é uma mulher que está presa no dia 18 de novembro. O artifício presta-se a uma reflexão sobre a memória e o tempo.
Escrito na primeira década do século XX, Maurice (336 págs., 125 reais), de E.M. Forster, só foi editado em 1971. A demora, reflexo do tabu em torno da homossexualidade, contribuiu para tornar a obra um marco da literatura queer. A Ercolano relança-a agora em nova tradução e capa dura.
Publicado na edição n° 1384 de CartaCapital, em 22 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O que é experimental?’
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