Entrevistas
‘Fomos tratados como terroristas por levar comida e remédio a crianças’
Em entrevista a CartaCapital, Luizianne Lins relata os dias de prisão e humilhação flotilha humanitária interceptada por Israel a 50 milhas de Gaza – e critica a resposta do Itamaraty


“Fomos tratados como terroristas por tentar levar comida e remédio a crianças.” A frase é da deputada federal Luizianne Lins (PT-CE), integrante da Flotilha Global Sumud, missão humanitária com participantes de mais de 40 países que tentou romper o bloqueio a Gaza. A travessia, iniciada em setembro, terminou em alto-mar: a cerca de 50 milhas náuticas do destino, a embarcação onde estava a brasileira foi interceptada por forças israelenses.
O que se seguiu, relata Luizianne, foi uma coreografia de humilhações: jatos d’água com mau cheiro, drones lançando bombas ao redor do veleiro, confisco de passaportes e horas de contenção até o desembarque no porto de Ashdod. “No asfalto quente, de joelhos, com a testa no chão e o passaporte sobre a cabeça”, lembra ela. De lá, o grupo foi enviado para a prisão de Kziot, no deserto, onde a deputada e outros estrangeiros ficaram seis dias.
Com passaporte diplomático, ela poderia ter sido separada, mas escolheu permanecer com os 12 brasileiros detidos. Recusou assinar a deportação, que a faria admitir entrada ilegal e “colaboração com o Hamas” — e cobrou ação do Itamaraty. “Diplomacia existe para proteger cidadãos em risco”, diz.
Em entrevista a CartaCapital, a deputada relata os bastidores da missão, o cotidiano na prisão israelense e as falhas da diplomacia brasileira no episódio.
Confira os destaques a seguir.
CartaCapital: Quando começou sua ligação com a causa palestina?
Luizianne Lins: Sou pró-Palestina desde o movimento estudantil. Mas essa militância ganhou nova dimensão em abril do ano passado, quando fui convidada para participar de uma conferência com parlamentares de vários países que defendem a causa palestina e a criação do Estado da Palestina.
Nesse encontro, foi formado um comitê executivo de uma liga parlamentar internacional, composta por 17 membros. O presidente é do Iêmen, e há duas representantes da América Latina: eu e a senadora Clara López, da Colômbia.
A partir da minha participação, aprofundei ainda mais meu envolvimento com a questão palestina, especialmente nesses dois últimos anos — os mais duros, em que Israel tem praticado, dia e noite, o que considero uma tentativa de genocídio. Em agosto, por integrar essa liga e também por já ter promovido várias iniciativas na Câmara, fui convidada a participar, como observadora internacional, desta missão humanitária.
Não havia, da parte [da embaixada em Israel], o senso de urgência de que precisávamos sair dali imediatamente
CC: Como foi a interceptação?
LL: Durante a interceptação, os navios militares israelenses começaram a lançar fortes jatos d’água contra as embarcações. Eram jatos com um cheiro terrível, como de enxofre, e pareciam conter algum tipo de gás. Ficamos completamente encharcados, e os barcos balançavam violentamente. Foram, pelo menos, sete ataques desse tipo contra o nosso barco.
Sem saber se seríamos afundados ou atacados, ficamos em posição de rendição, com os braços erguidos e usando coletes salva-vidas. Em seguida, os militares israelenses se aproximaram em botes motorizados, pularam a bordo, tomaram o controle do barco, confiscaram nossos passaportes e nos colocaram na parte inferior da embarcação. Permanecemos assim por cerca de 15 horas, até sermos levados ao porto de Ashdod, em Israel — mesmo sem estarmos em águas israelenses nem tentarmos ingressar no país.
No porto, começou um longo processo de detenção. Ficamos o dia inteiro sob o que chamei de ‘embargo burocrático’: passamos por 10 ou 12 quiosques diferentes. Na chegada, fomos obrigados a ficar nus durante a revista. Fomos tratados como terroristas. Homens e mulheres foram separados. Todos tivemos de caminhar com a cabeça abaixada e as mãos para trás. Ao chegar ao pátio do porto, que era de asfalto quente sob sol intenso, nos obrigaram a ficar de joelhos, com os cotovelos e a testa no chão, segurando o passaporte diante da cabeça. Permanecemos nessa posição por mais de uma hora. Quem tentava se mover era empurrado novamente contra o chão. Durante todo o dia, passamos por esse processo, sem direito a falar, comer, beber água ou usar o banheiro. Soldados armados com fuzis e metralhadoras nos mantinham sob vigilância constante. Quando apresentaram o documento de deportação, recusei-me a assinar.
A diplomacia, sozinha, não detém um genocídio
CC: Por que a senhora se recusou a assinar a deportação?
LL: O texto me obrigava a admitir que havia entrado ilegalmente em Israel e a reconhecer-me como terrorista, o que seria falso e inaceitável. Por ter passaporte diplomático, eu poderia ser enviada para outro tipo de prisão, mas preferi permanecer com a delegação brasileira, composta por mais 12 pessoas. Não sabíamos o que poderia acontecer, e eu queria garantir que todos saíssemos juntos.
CC: E o que aconteceu na prisão?
Depois disso, fomos levados para uma prisão de segurança máxima localizada no deserto, a cerca de quatro horas do porto. Ficamos lá por seis dias. As condições eram desumanas: celas projetadas para cinco pessoas abrigavam 11, e havia celas com até 20 detentos. O próprio [primeiro-ministro] Benjamin Netanyahu havia declarado que seríamos tratados como terroristas, e assim foi feito. Fomos presos, humilhados e mantidos sob condições degradantes apenas por tentar levar ajuda humanitária ao povo palestino.
CC: Houve violência? Violações de direitos?
LL: Houve, sim, muitas violações de direitos humanos. Só não fomos submetidos às torturas físicas que os palestinos sofrem rotineiramente porque éramos uma delegação internacional, com representantes de 44 países. Havia muita atenção da imprensa e das famílias dos participantes. Mesmo assim, fomos humilhados, tratados como criminosos por levar ajuda humanitária.
As cenas na prisão foram degradantes. Soldados com metralhadoras e cães farejadores entravam nas celas a qualquer hora. Sofremos privação de sono porque eles passavam a noite inteira batendo nas grades e fazendo contagens sucessivas de presos, hora a hora, como forma de tortura psicológica.
O ministro da Segurança Nacional de Israel chegou a percorrer as celas, acompanhado por forte aparato midiático e dezenas de soldados armados, dizendo que éramos terroristas, que estávamos ali para fortalecer o Hamas. Tudo isso era filmado. Quando ele entrou na minha cela, perguntou de onde eu era. Respondi: ‘Do Brasil’. Ele começou a fazer piadas e, de repente, mencionou Hitler, em uma clara tentativa de ironizar o presidente Lula, que havia comparado a ofensiva israelense a um genocídio.d
São Paulo (SP), 09/10/2025 – O ativista Thiago Ávila fala na chegada dos integrantes da delegação brasileira da Flotilha Global Sumud ao aeroporto internacional de Guarulhos. À esquerda, a deputada Luizianne Lins. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
CC: Vocês sabiam do perigo? Em algum momento, a senhora temeu por sua vida?
LL: Sabíamos. Em 2010, uma flotilha menor foi atacada e dez pessoas foram assassinadas na hora da interceptação. Nós poderíamos ter tido o mesmo destino, mas o que nos moveu foi a convicção de que a solidariedade internacional é uma forma de enfrentamento político.
Estávamos em um barco à vela, em alto-mar, totalmente expostos. O primeiro sentimento foi o de vulnerabilidade diante dos ataques. Embarquei na cidade italiana de Catânia, um porto na região da Sicília, no dia 11 de setembro, que foi o último dia de treinamento. A partir dali, toda a flotilha se reuniu e começamos a navegação rumo a Gaza. Quando já estávamos em águas internacionais, vimos drones no céu. Pouco depois, começaram a cair bombas próximas ao nosso barco. Foi desesperador. Seguimos o protocolo de segurança, vestimos os coletes salva-vidas e tentamos manter a calma. Pelo menos oito bombas foram lançadas contra nós a partir dos drones.
Você imagina: em pleno Mar Mediterrâneo, sem terra à vista, em um pequeno veleiro, sendo atacados à noite por um inimigo que nem mostra o rosto. É a maior covardia do mundo. As águas internacionais, como o nome diz, não pertencem a nenhum país. Mesmo assim, Israel se arroga o controle da região desde 2007, impondo um bloqueio ilegal que impede até os próprios palestinos de pescar em seu mar. É um cerco desumano, um verdadeiro crime contra a humanidade.
CC: Como você classifica a resposta do governo e do Itamaraty?
LL: O corpo diplomático é muito hierarquizado, e quando o embaixador se retira, quem assume é um funcionário de carreira ligado à área comercial, que não tem o mesmo peso político. Eu desconhecia essa limitação até vivenciá-la na prática. Na sexta pela manhã, percebemos que os consulados e embaixadas dos outros países começaram a se mobilizar imediatamente. As mulheres que estavam comigo na cela — havia dez de diferentes nacionalidades — foram sendo chamadas, uma a uma, por seus consulados. De manhã, vinham os funcionários consulares; à tarde, os próprios embaixadores. Todos, menos o Brasil. A delegação brasileira só foi chamada no fim da tarde de sexta-feira. Fomos os últimos.
Relatamos tudo o que havia acontecido, as violações, os maus-tratos, mas senti pouca iniciativa, pouca firmeza no atendimento. Não havia, da parte deles, o senso de urgência de que precisávamos sair dali imediatamente. Naquele período havia um feriado religioso em Israel, de quarta a sexta. No sábado, ninguém recebeu visitas, e no domingo, quando todas as outras embaixadas voltaram a contatar suas delegações, a brasileira não apareceu. Nós fomos a única delegação que não recebeu visita naquele dia.
A posição que sempre defendi, e que sigo reafirmando, é a da autodeterminação plena da Palestina
Na segunda-feira pela manhã, fomos levados a uma audiência com juízes israelenses. No meu caso, uma juíza. A primeira pergunta que me fez foi se eu queria voltar ao Brasil. Respondi que sim, mas que não assinaria nenhum documento. Porque o texto que eles nos obrigavam a assinar dizia que tínhamos entrado ilegalmente em Israel, que estávamos colaborando com o Hamas e que éramos terroristas. Eu me recusei. Disse a ela: ‘Sou deputada federal do Brasil, estou em missão humanitária autorizada pela Câmara dos Deputados, e não vou construir prova contra mim’.
Na tarde de segunda-feira, finalmente, os representantes da embaixada brasileira voltaram à prisão. Eu disse a eles: ‘Vocês têm consciência de que são a única ponte que nós temos com o mundo exterior? A função da diplomacia é exatamente essa. Se não serve para proteger cidadãos em risco, não serve para nada’.
Um dos diplomatas, muito jovem, respondeu: ‘Meu salário não chega a tanto’. Eu perguntei: ‘Como assim?’. E ele explicou que não tinha contato direto com o ministro das Relações Exteriores. Fiquei chocada. Estávamos detidos numa prisão de segurança máxima, com 12 brasileiros sob custódia, e o Itamaraty não tinha informações diretas sobre a nossa situação.
CC: E em Brasília, houve mobilização?
LL: É importante lembrar: eu não estava lá de forma avulsa. Essa missão humanitária foi oficialmente autorizada pelo presidente da Câmara dos Deputados. Toda vez que um parlamentar brasileiro viaja em missão oficial, o Itamaraty é informado. Então, o governo sabia onde estávamos.
Em Brasília, o líder do PT na Câmara, deputado José Guimarães, e outros colegas acompanharam de perto, tentando pressionar por nossa libertação. Mas a sensação é que, naquele momento, a comunicação entre a embaixada e o ministério estava truncada.
Naquele dia, pedi que me deixassem escrever uma carta de próprio punho ao ministro Mauro Vieira, relatando nossa situação e pedindo ação urgente. Entreguei a carta aos diplomatas, que se comprometeram a encaminhá-la. No dia seguinte, começaram as liberações. Quando percebemos, estávamos sendo levados — sob forte aparato militar — para cruzar a fronteira com a Jordânia. Foram quatro horas de viagem em comboio, até que finalmente, ao atravessar a fronteira, sentimos que estávamos livres.
Na Jordânia, fomos recebidos com dignidade. O embaixador brasileiro, Márcio, nos esperava pessoalmente, acompanhado da embaixatriz, da equipe da embaixada, da Polícia Federal e até de representantes da Abin. No dia seguinte, o embaixador nos acompanhou até o aeroporto, e pegamos o voo de volta ao Brasil. Chegamos a São Paulo na quinta-feira. E, naquele mesmo dia, tivemos a notícia de que, pela primeira vez em dois anos, os palestinos dormiram sem bombardeios sobre suas cabeças. Pode parecer simbólico, mas para nós foi profundamente significativo.
Grupo de brasileiros foi detido por Israel, após interceptação de flotilha humanitária a Gaza. Créditos: Divulgação/Global Sumud Flotilla
CC: Qual o saldo da missão?
LL: Acredito que essa missão mexeu com o mundo. Foi a prova de que a solidariedade internacional ainda pode mover a história. A pressão internacional aumentou, e o próprio governo israelense, entre muitas aspas, “autorizou” a entrada de 600 caminhões de ajuda humanitária por dia em Gaza. Fico feliz em saber que, ainda que parcialmente, os mantimentos enviados pelo mundo inteiro começam a chegar ao povo palestino. Sinceramente, cada vez mais acredito que a ação direta, os gestos concretos de solidariedade, são indispensáveis. A diplomacia sozinha não detém um genocídio. É preciso coragem para agir, para colocar o corpo e o nome em risco, como forma de resistência.
CC: Houve, finalmente, um cessar-fogo. E agora?
LL: Agora, mais do que nunca, é hora de vigilância. Não podemos desviar os olhos de Gaza. Esse cessar-fogo ou qualquer tipo de acordo é frágil, porque parte de uma lógica colonial, de quem quer ditar ao povo palestino como deve agir, o que deve entregar, como deve se reconstruir. A posição que sempre defendi, e que sigo reafirmando, é a da autodeterminação plena da Palestina. Qualquer processo de reconstrução tem que partir do povo palestino, com sua voz, sua vontade e sua participação direta nas comissões que vão reconstruir Gaza.
Não é possível que colonizadores decidam o destino de um povo que resiste há décadas. Se há algo que nossa viagem mostrou é que a solidariedade internacional precisa caminhar lado a lado com o protagonismo palestino. Porque eles, e só eles, têm o direito de decidir o futuro da sua própria terra.
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