Do Micro Ao Macro

Ecos do Caparaó

Entre montanhas e microclimas, pequenos produtores transformam a região em símbolo do café premium

Ecos do Caparaó
Ecos do Caparaó
20240227- CAPARAÓ-MG - Projeto Caparaó- Sítio Recanto da Paineira- Foto Leo Lara/Area de Serviço
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Era 2019 quando uma pequena produtora de café decidiu arriscar um caminho diferente para a lavoura da família. Até então, o grão era ­commodity, colhido e secado em terreiros simples, sem diferenciação no mercado. O ponto de virada veio após um curso de degustação. Diante da mesa de prova, ela percebeu que o café poderia ter sabores, aromas e destinos muito mais amplos. Voltou para casa decidida a experimentar. Pediu ao marido que construísse um terreiro suspenso e começou a separar grãos maduros para testar. Em um sítio de baixa altitude, contrariando o senso comum da época, produziu os primeiros lotes especiais. O resultado surpreendeu. No mesmo ano, conquistou prêmios em concursos regionais e nacionais, abrindo as portas para as exportações.

A produtora se chama Silmara ­Emerick, quarta geração de uma família da mineira Alto Jequitibá que transformou uma propriedade modesta em referência de inovação, qualidade e empreendedorismo. Ao lado do marido e dos filhos, Emerick manteve a tradição e renovou a forma de viver do café. Sua trajetória simboliza a guinada da região do Caparaó nas últimas duas décadas. Tradicional produtora, a área formada por 16 municípios de Minas Gerais e Espírito Santo tornou-se símbolo dos cafés especiais produzidos no Brasil e que têm conquistado o mundo, com Denominação de Origem reconhecida pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial em 2021.

“Antes, a gente nem sabia quanto custava uma saca. Hoje anotamos tudo. Mudamos hábitos, não queimamos lixo, plantamos árvores e organizamos a propriedade”, diz ela.

CAPARAÓ-MG – Projeto Caparaó- Sítio Recanto das Pedras- Foto Leo Lara/Area de Serviço

Qualidade reconhecida e protegida

O nome indígena Caparaó significa “águas cristalinas que rolam das pedras” e traduz a ligação íntima entre o território, o meio ambiente e o modo de vida das famílias produtoras. São cerca de mil agricultores na região, quase todos em pequenas propriedades familiares.

A geografia montanhosa impede a mecanização, mas transforma a colheita manual em ativo. Cada grão é escolhido com cuidado, preservando a qualidade. A altitude acima de mil metros, os microclimas criados pelo parque nacional na região e o modo de produzir repassado de geração em geração resultam em cafés naturalmente doces, com notas de mel, chocolate, rapadura e frutas. A avaliação segue padrões internacionais, como o protocolo da SCA, garantindo comparabilidade e linguagem comum com o mercado global.

A partir dos anos 2000, programas de capacitação e instituições de apoio ensinaram os produtores locais a investir na pós-colheita e em boas práticas de manejo. A região acumulou prêmios nacionais e internacionais, tornando-se território de excelência. Para dar coesão ao movimento, nasceu a Associação de Produtores de Cafés Especiais do Caparaó, em 2016, responsável por organizar certificações, treinamento e ações de marketing. Por meio da entidade, produtores conquistaram a Denominação de Origem, um selo que garante rastreabilidade, identidade e comprovação de qualidade. Para compradores e consumidores, o certificado significa que cada lote pode ser rastreado até o produtor, talhão e método de secagem, com laudo técnico atestando suas características. Para os agricultores, representa valorização, proteção da reputação coletiva e melhores preços no mercado.

Café da Silmara, na Serra do Caparaó. Foto: Bruno Figueiredo

“Aqui sempre se produziu café, mas o especial ganhou notoriedade há 15 ou 20 anos”, explica Gustavo Villas Boas, produtor e liderança regional em Espera Feliz (MG). “O que nos diferencia é a combinação de altitude, microclima e a cultura familiar que se mantém viva.”

Diagnósticos recentes apontam secas severas e mudanças no regime de chuvas em Minas Gerais, com áreas registrando até 50% de queda frente às normas sazonais. A resposta no campo inclui sombreamento, quebra-ventos, terraços para retenção de água, diversificação de cultivares e adaptação no manejo das floradas. O objetivo é resiliência: manter qualidade e produtividade mesmo sob variabilidade climática, honrando a D.O. e o compromisso com a sustentabilidade.

Sustentabilidade que nasce no campo

A proximidade com o parque nacional faz com que a preservação de nascentes e encostas esteja diretamente ligada à qualidade da lavoura. Muitos produtores incorporaram práticas regenerativas, como plantio de árvores nativas, manutenção de cobertura do solo, uso racional da água e reciclagem de resíduos. A sustentabilidade deixou de ser discurso e passou a ser rotina, influenciando diretamente na produtividade e na imagem internacional do café da região.

O empreendedorismo também ganhou novas formas de expressão. Famílias como a De Lacerda, em Espera Feliz, transformaram a lavoura em vitrine de cafés premiados e abriram as porteiras para o turismo. Colheitas artesanais, oficinas de abanação e provas conectam visitantes à realidade da roça, mostrando que a experiência é outro produto de valor. A integração consolidou-se com a Rota de Experiências Caparaó Mineiro, lançada em 2025, em parceria com o Sebrae Minas, prefeituras e cooperativas de crédito. São 13 vivências turísticas que unem cafeicultura, gastronomia, cultura local e hospitalidade.

Café Os De Lacerda. Foto: Bruno Figueiredo

Os turistas acompanham todo o processo, da colheita manual à torra, aprendem a identificar aromas e sabores e se conectam à história das famílias. Mais que atrativo, o turismo tornou-se um complemento de renda. Pequenos negócios se reinventaram para receber visitantes, abrir cafeterias, oferecer hospedagem e transformar a identidade cafeeira em motor econômico. A governança coletiva se fortaleceu, organizando sinalização, marketing territorial e formação profissional. O café, antes visto apenas como produto agrícola, agora é vetor de desenvolvimento integrado.

O papel da nova geração

É aí que surge a história de Luiza Lacerda, produtora do “Café Os De Lacerda” e representante de uma nova geração que combina tradição familiar, excelência técnica e visão empreendedora. A família cultiva café desde 1952, quando o avô plantou as primeiras mudas em Espera Feliz. A virada para cafés especiais começou em 2010, quando ele venceu um concurso regional de qualidade promovido pela Emater de Minas. Desde então, a família participa anualmente de competições e consolidou um nome respeitado no circuito nacional.

Em 2020, em plena pandemia, Luiza decidiu se dedicar ao café. Enviou a primeira amostra em nome próprio a um concurso estadual, ficou em 3º lugar geral com 90,333 pontos e foi a mulher mais bem pontuada da edição. A classificação levou ao nacional da ABIC — que ela venceu, com o título de melhor café do Brasil. “Eu era funcionária pública, mas percebi que o café era o meu caminho”, resume.

Nos anos seguintes, abriu a propriedade ao público: construiu um deck de serviço, montou uma pequena cafeteria, fez cursos de degustação e classificação e passou a organizar visitas guiadas, passeio de trator e piqueniques. A torrefação é da família, com divisão de tarefas da lavoura à torra. Hoje, vende no mercado interno, trabalha com Catuaí Vermelho, Caparaó Amarelo e Geisha e ajusta o pós-colheita ao perfil sensorial que pretende alcançar. “Tudo aqui é feito por nós. A produção é familiar, assim como a história que está por trás de cada xícara”, diz.

Café da Silmara: Foto Bruno Figueiredo

Nesse ponto, o caso de Emerick destaca-se novamente. Depois das premiações iniciais, a cafeicultora diversificou a produção com uma pequena torrefação instalada no sítio. Hoje, vende cafés torrados diretamente ao consumidor final, em redes sociais e cafeterias, e exporta para diferentes países. A família incorporou ainda práticas mais sustentáveis: deixou de queimar lixo, planta árvores e controla custos, além de ter certificado a propriedade. “Antes, a gente não sabia nem quanto custava uma saca de café. Hoje sabemos, e isso mudou a nossa forma de ver a roça”, diz a produtora. O café especial, segundo ela, não é só qualidade na xícara. É dignidade para o agricultor, renda para a família, respeito ao meio ambiente e futuro para os filhos que decidiram permanecer no campo. Do primeiro terreiro suspenso ao selo de Denominação de Origem, o Caparaó encontrou um caminho no qual tradição e inovação caminham juntas. E nas águas que rolam das pedras, como define o nome indígena da serra, brota o esforço de produtores como Silmara Emerick, que fizeram da sustentabilidade e do empreendedorismo a marca do café de aromas e sabores únicos de um pedaço especial do Brasil.

Uma versão condensada deste texto aparece na edição semanal de CartaCapital sob o título ‘Aroma de perfeição’

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